Sobre a suposta ambivalência do conceito de comunismo

Théorie Communiste

Proelium Finale
4 min readMar 27, 2020

O termo “comunismo” parece carregar em si uma ambiguidade em seu uso: movimento e resultado. Mas só é uma ambiguidade no nosso pobre cérebro infectado pelo idealismo.

Há dois usos da palavra “comunismo”: “O comunismo não é para nós um estado de coisas [Zustand] que deve ser instaurado, um Ideal para o qual a realidade deverá se direcionar. Chamamos de comunismo o movimento real que supera o estado de coisas atual”[1], e comunismo enquanto “sociedade”, “comunidade”, em suma, “como será depois…”, como “resultado”. De fato, há, nestes dois “comunismos”, um que existe e um que não existe. Esta dualidade é o resultado de um pensamento absolutamente louco que considera, de um lado, um movimento de produção e, de outro, o resultado deste movimento de produção como uma culminação, como se esta já estivesse latente em algum lugar, à espera da realização do primeiro. Mesmo quando se trata do segundo sentido (a culminação), é necessário saber que é sempre do primeiro que se está falando. Há apenas um sentido, um emprego: “o movimento que supera”. Quando se trata da culminação, sempre se trata do movimento em questão. Conceber que o resultado já existe e, pior ainda, que o movimento só faz sentido pelo resultado, é estar completamente impregnado pelo pensamento finalista.

Na Ideologia Alemã, a frase que precede aquela citada sobre o comunismo como o movimento indica que “o comunismo, empiricamente, é apenas possível como ação ‘repentina’ e simultânea dos povos dominantes, o que pressupõe o desenvolvimento universal da força produtiva e o intercâmbio mundial associado a esse desenvolvimento”. E ainda mais: “sem [essa história mundial] (…) o comunismo poderia existir apenas como fenômeno local[2]”. Um após o outro, Marx sempre utiliza “comunismo” nos famosos dois sentidos diferentes. Não, só existe um. Pensar o “resultado” como um segundo sentido é o resultado de um pensamento teleológico, e se entende bem porque Marx nunca escreveu receitas “para o cardápio da taberna do futuro”[3].

Por fim, após a frase sobre a “superação do estado de coisas atual”, lemos: “O proletariado (…) só pode, portanto, existir histórico-mundialmente, assim como o comunismo [que é] sua ação[4]”. O comunismo é “o movimento que supera” e, além disso, “esse movimento que supera” é a ação do proletariado.

Nos Grundrisse, Marx dirá, de maneira objetivista, sobre a problemática do programatismo (a luta do proletariado não vem senão executar a sentença que o capital promulga contra si mesmo): “Uma massa de formas antitéticas da unidade social cujo caráter antitético, todavia, jamais pode ser explodido por meio de metamorfoses silenciosas. Por outro lado, se não encontrássemos veladas na sociedade, tal como ela é, as condições materiais de produção e as correspondentes relações de intercâmbio para uma sociedade sem classes, todas as tentativas para explodi-la seriam quixotadas[5]”.

O que deve existir não existe ainda como uma expectativa de sua realização pelo movimento que o produz; o que deve existir é apenas seu movimento de produção. É somente assim que “deve” existir. O movimento de sua produção é a totalidade de sua existência. A rigor, existe apenas um sentido, o do movimento: quando se trata do resultado, ainda se trata do movimento. O segundo sentido não existe, pois simplesmente, e isso é óbvio, o que deveria designar não existe.

Entretanto, dizíamos que, mesmo quando se trata do segundo sentido (a culminação), sempre deve se saber que é sempre do primeiro que estamos falando. Isso quer dizer que se não há um objetivo pré-existente no movimento da luta de classes, há de fato uma necessidade deste movimento como contradição do capital: o movimento do capital, sua existência mesma como contradição de classes é seu obituário. É mesmo o único modo de produção que possui essa dinâmica. Mesmo se a concepção da revolução tenha mudado com o curso da contradição entre as classes, passado da visão programática àquela que é a nossa atualmente como comunização, esta concepção sempre é produto da contradição de classes. No programatismo houve uma integração, na luta de classes, de um desenvolvimento ulterior do capital, desenvolvimento que o proletariado estava em condições de assumir por si próprio: o desenvolvimento das forças produtivas. Não se trata de uma culminação, de um objetivo, de um produto que existe fora da forma mesma da contradição de classes então existente.

O modo de produção capitalista não é o primeiro modo de produção histórico, já que todos foram, mas é o primeiro no qual esse caráter está evidente. Ele mesmo é produto histórico e produz sua superação por sua contradição constitutiva: contradição de classes como sempre, mas o primeiro a ter uma contradição dinâmica. A superação histórica não é somente concebível, mas sua concepção faz parte da superação mesma. Sua concepção faz parte da contradição que é a contradição de classes, ou seja, como “movimento [que] supera o estado de coisas atual”. As lutas de classe estão sempre conscientes do que são e do que fazem.

Mesmo que como “objetivo” nós estejamos sempre falando do movimento, o comunismo é levado a se diferenciar do movimento, a aparecer, por si mesmo, como objetivo. O comunismo como objetivo está sempre presente na teoria revolucionária. Falar do comunismo no presente é falar da perspectiva comunizadora que proclamada no presente adquire uma existência de antecipação. É esta antecipação constitutiva da teoria que constitui o problema. O problema está no fato de que, se o movimento é a única existência do objetivo, este tem a tendência de se autonomizar como ideologia.

[1] Karl Marx & Friedrich Engels, A Ideologia Alemã, Boitempo, 2007, p. 38, nota a.

[2] Ibid., p. 38–9, nota c.

[3] Karl Marx, O Capital: livro I, Boitempo, 2013, p. 88.

[4] A Ideologia Alemã, p. 39, nota a.

[5] Karl Marx, Grundrisse, Boitempo, 2011, p. 107.

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