Espontaneidade, Mediação, Ruptura

Endnotes

Proelium Finale
33 min readJul 18, 2020

“Não sabemos se os destinos [contrastantes] de Luxemburgo (…) e Lenin deveriam ser associados ao fato de que Lenin e seu grupo armaram os trabalhadores, enquanto os Espartaquistas continuaram a ver a organização como coordenação (…) e a recusa ao trabalho como a única arma adequada dos trabalhadores. A essência do leninismo muda da relação entre espontaneidade e o Partido à relação entre o Partido e a insurreição.”1

As lutas atuais estão se desenvolvendo na direção da revolução? Tentamos nos orientar, com relação a essa questão, da única maneira que podemos: não só com nossa experiência do presente, mas também consultando as teorias revolucionárias do passado. Contudo, olhar para teorias revolucionárias do passado é uma empreitada problemática: essas teorias surgiram em resposta a um conjunto de problemas que afloraram no curso de uma época particular — uma época que não é a nossa. De fato, as teorias revolucionárias do século XX foram desenvolvidas no curso de uma sequência de lutas as quais chamamos de movimento operário. Essas teorias não só carregam os traços do movimento operário em geral. Elas se formaram em resposta aos limites que o movimento enfrentou em seu ponto de maior intensidade — isto é, na era das revoluções, 1905–21.

Os limites do movimento operário tinham tudo a ver com o problema de incutir uma consciência de classe em uma população que só fora incompletamente proletarizada. Defrontando-se com um grande campesinato no campo e uma coleção heterogênea de classes trabalhadores nas cidades, os estrategistas do movimento operário ansiavam por um momento futuro no qual a proletarização completa — dependente de um desenvolvimento posterior das forças produtivas — erradicaria as divisões existentes entre os proletários. A unidade objetiva da classe encontraria então um corolário subjetivo. Como se pôde ver, este sonho nunca virou realidade. O desenvolvimento posterior das forças produtivas reforçou certas divisões entre proletários, enquanto criava outras. Enquanto isso, esse desenvolvimento erradicou a base da unidade dos trabalhadores. Trabalhadores descobriram que não eram mais a força vital da era moderna; ao invés disso, eram transformados em apêndices — acessórios de um conjunto crescente de máquinas e infraestruturas que escaparam de seu controle2.

Voltar, ainda que rapidamente, ao apogeu revolucionário do século passado — antes da destituição do movimento operário — pode nos ajudar a compreender o contexto no qual as teorias revolucionárias do passado nasceram. Com base nisso, começaremos a articular uma teoria revolucionária para a nossa própria época. Mas devemos ter cuidado antes de assumirmos tal projeto hoje: o surgimento de revoluções é, por sua própria natureza, imprevisível; nossa teoria deve de alguma maneira incorporar essa imprevisibilidade em seu próprio núcleo. Os revolucionários de uma era anterior em sua maioria se recusaram a se abrir para o desconhecido — mesmo que as revoluções que viveram não tenham ocorrido da maneira que esperavam.

Afinal, as revoluções do século XX acabaram não sendo o resultado de projetos metódicos, de construção lenta de sindicatos e/ou de adesão ao partido, as quais se esperava expandir pari passu com a industrialização e a homogeneização da classe. Ao invés disso, as ondas revolucionárias de 1905–21 surgiram caoticamente, com lutas auto-organizadas se formando em torno da tática da greve em massa. Nem o surgimento nem o desenvolvimento da greve em massa foi previsto pelos estrategistas revolucionários, apesar de décadas de reflexão (e os exemplos históricos de 1848 e 1871)3.

Entre os poucos revolucionários que não se opuseram a esta nova forma de luta imediatamente, Rosa Luxemburgo veio a identificá-la como a tática revolucionária por excelência. Seu livro, Greve de Massas, é um dos melhores textos na história da teoria revolucionária. Contudo, inclusive Luxemburgo via a greve de massas como um meio de revitalizar o Partido Socialdemocrata Alemão. Como Dauvé ressalta: “se [Luxemburgo] foi a autora da fórmula, ‘Após 4 de agosto de 1914, a socialdemocracia não é nada mais que o cadáver repugnante’, ela se provou como uma baita necrófila”4.

Prelúdio: a greve de massas

A história da greve de massas é uma história subterrânea, em grande parte não escrita. Mas pode ser resumida conforme segue5.

Em 1902, greves itinerantes ocorreram na Bélgica e na Suécia, como um meio de pressionar pelo sufrágio masculino universal. A tática então se espalhou para os Países Baixos e a Rússia antes de chegar à Itália, em 1904, como um protesto contra a violenta repressão aos levantes operários. Na Itália, os conselhos operários foram formados pela primeira vez. A primeira onda chegou a seu apogeu nas enormes greves de massa russas de 1905, que culminaram em uma insurreição — a primeira Revolução Russa — em dezembro daquele ano. Com o exemplo russo servindo como o modelo, a tática da greve de massas circulou rapidamente pelas cidades europeias.

Logo apareceu na Alemanha, o coração do marxismo da 2ª Internacional, onde a questão do “propósito” da greve de massas — que já havia sido usado para uma variedade de fins diferentes — foi colocada pela primeira vez. Para os representantes dos sindicatos, a greve de massas parecia ser um obstáculo a suas próprias tentativas lentas de organizar a classe. Um sindicalista alemão declarou: “Para construir nossas organizações, precisamos de calma no movimento operário”6. Todavia, a tática continuou a se espalhar e seu escopo se ampliou, apesar do pronunciamento da 2ª Internacional de que apoiava a tática da greve de massas apenas com uma arma defensiva.

Após a onda de 1902–07, as lutas se acalmaram antes de eclodirem novamente em 1910–13. No curso destas duas ondas, a adesão aos sindicatos teve um surto de crescimento; conquistou-se o voto na Áustria e na Itália, enquanto os Estados escandinavos foram forçados a se liberalizarem. O anarcossindicalismo e o comunismo de esquerda apareceram como tendências distintas. O início da Primeira Guerra Mundial pôs um fim à segunda onda de greves, que já estava começando a se esgotar gradualmente. Mas este bloqueio aparentemente permanente se revelou como outro impedimento temporário. Pela Europa, o número de greves já estava crescendo em relação aos níveis baixos de 1915. A atividade se espalhou para além do local de trabalho: houve greves de aluguel em Clydeside e atos contra os preços da comida em Berlim. Em 1916, greves de massa foram chamadas na Alemanha, mas desta vez para protestar contra a prisão de Karl Liebeknecht, um símbolo de oposição consistente à Guerra. Em 1917, a agitação dos trabalhadores foi igualada por motins no exército e protestos por comida nas ruas, entre outras ações. Estas ações se proliferaram por meio de novas formas de organização: os movimentos de representantes sindicais na Inglaterra e na Alemanha e as “comissões internas” na Itália.

Assim, mesmo antes da Revolução Bolchevique em outubro, a luta se intensificava nas cidades europeias. As greves de massa na Áustria e na Alemanha foram as maiores da história destes países. As pessoas esquecem que a Primeira Guerra acabou não por causa da derrota de um lado, mas porque muitos dos países envolvidos em hostilidades colapsaram em uma onda de revoluções, que aumentaram e então diminuíram de 1917 até 1921. Não vamos nos deter nesta onda final de lutas, exceto para citar as palavras que Friedrich Ebert, líder do SPD, dirigiu à amedrontada burguesia alemã, em 1918: “Somos os únicos que podem manter a ordem”…

O que podemos aprender desta breve história da tática da greve de massas? Caso uma revolução fosse ocorrer hoje, também deveria surgir a partir de uma intensificação enorme de lutas espontâneas e auto-organizadas. Essas lutas teriam que entrar em erupção e se estender a vastos espaços geográficos, em um fluxo e refluxo que dure décadas. É só neste contexto — isto é, um contexto do desenvolvimento de uma sequência de lutas — que a revolução se torna, não só teórica, mas realmente possível. Portanto, é também apenas no curso de intensificação das lutas que as questões estratégicas de uma época podem ser feitas e respondidas de uma maneira concreta.

Contudo, não podemos aprender muito mais do que isso com base no passado. A tática da greve de massa foi específica à sua época, que testemunhou: (1) uma consolidação sem precedentes das empresas e locais de trabalho; (2) a chegada, em novas cidades industriais, de camponeses recentemente proletarizados, trazendo consigo determinadas culturas de solidariedade; (3) a luta dos trabalhadores para defender seu controle sobre o processo de trabalho contra a mecanização e a racionalização; e, finalmente, (4) a luta contra um persistente velho regime– uma luta por igualdade de cidadania, o direito de se organizar, e o voto — que as elites se recusavam a ceder aos proletários. O horizonte da luta é muito diferente hoje, embora as ferramentas que temos para compreender a relação entre as lutas e a revolução ainda contenham os traços do movimento operário.

Estas ferramentas devem ser forjadas novamente. A citação de Bologna, com a qual começamos, toca nos conceitos-chave da teoria revolucionária como foi compreendida no decurso do movimento operário: espontaneidade e organização, partido e insurreição. A questão que se põe para nós é: como articulamos as relações entre esta constelação de conceitos hoje, isto é, após o fim do movimento operário (que significou também, e necessariamente, o fim de todas as tradições revolucionárias que animaram o último século: o leninismo e a ultra-esquerda, a socialdemocracia e o sindicalismo, e assim por diante)? Oferecemos as seguintes reflexões sobre três conceitos — espontaneidade, mediação, ruptura — como uma tentativa de remodelar as ferramentas da teoria revolucionária, para o nosso tempo. Ao tomar conhecimento da distância que nos separa do passado, esperamos extrair das teorias passadas algo útil para nós no presente.

O problema da coordenação

Antes de discutirmos os conceitos-chave da teoria revolucionária, devemos parar para dizer algo sobre a especificidade da luta nas sociedades capitalistas. Fora destas sociedades, os seres humanos estão majoritariamente organizados em comunidades face a face. Quando entram em conflito, o fazem como comunidades que existem antes destes conflitos. Em contraste, nas sociedades capitalistas, os seres humanos estão em sua maioria atomizados. Os proletários se defrontam não como membros de comunidades face a face, mas como estranhos. Esta atomização determina o caráter das lutas contemporâneas. Pois a base na qual os proletários lutam não existe antes destas lutas. Ao contrário, as fundações da luta têm que ser construídas (a partir dos materiais da vida social) no decurso da própria luta. Esta característica das sociedades capitalistas tem duas causas básicas:

  1. Nos mercados onde vendem sua força de trabalho, os proletários competem um com o outro por empregos. Está dado na natureza da relação de exploração que nunca há empregos suficientes para todos. Nesta situação, alguns proletários pensam valer a pena formar gangues e grupos de extorsão — com base em gênero, raça, nação, crença — e, com base nisto, se opor a outros grupos de trabalhadores7. A oposição entre proletários se desenrola, não só com relação a diferenciais de empregos e salários, mas também com respeito às condições de trabalho, tempo para a família, oportunidades educacionais, e assim por diante. A competição intraclasse também é refletida fora dos mercados de trabalho, em hierarquias de status impostas implacavelmente, à mostra através do consumo conspícuo (carros chamativos) e incontáveis marcadores de estilo de vida (calças apertadas). Assim, uma situação cada vez mais universal de dependência do trabalho não levou a uma homogeneização de interesses. Pelo contrário, os proletários estão internamente estratificados. Se diferenciam cuidadosamente um do outro. Onde interesses coletivos foram cultivados por organizações, isso frequentemente reinscreveu outras diferenças competitivas nos limites de raça, nação, gênero, etc.
  2. A dependência do trabalho não só resulta em competição entre trabalhadores, repelindo um do outro. Na medida em que indivíduos conseguem garantir trabalho, o salário também liberta os proletários de terem de lidar um com o outro. Não mais dependentes de uma herança, os assalariados não devem satisfação a seus pais ou qualquer outra pessoa (à exceção de seus chefes!)8. Podem fugir do campo para as cidades, das cidades para os subúrbios, ou dos subúrbios de volta às cidades. Desde que encontrem trabalho, os proletários são livres para se movimentarem como quiserem. Podem fugir dos olhares admoestadores de autoridades ancestrais e religiosas, bem como de ex-amigos e amantes, para se relacionarem com quem quiserem, rezar para qualquer deus, e decorar sua casa de qualquer jeito. Os proletários não precisam ver ninguém que não gostam, exceto no trabalho. Assim, a comunidade se dissolve não só pela força; sua dissolução também é ativamente desejada. O resultado é uma estrutura social historicamente única, na qual as pessoas não precisam realmente depender diretamente umas das outras para muita coisa. Contudo, a autonomia individual dos proletários é conquistada à custa de uma falta de poder coletiva. Quando a revolta cessa, os proletários tendem a retornar à atomização. Retornam à lógica do dinheiro.

Como os proletários partem de uma situação de atomização quase universal, eles enfrentam um problema único de coordenação. Os proletários têm que encontrar meios de se agruparem, mas para fazerem isso devem superar a real oposição entre os seus interesses. Enquanto não superarem essas barreiras, eles se veem sem poder em sua luta contra o capital e o estado. Logo, o problema que os proletários enfrentam — em tempos não revolucionários — não é a falta de uma estratégia adequada (que poderia ser adivinhada por intelectuais espertos), mas sim a presença de assimetrias reais de poder, baseadas na sua atomização. Nada no arsenal do trabalhador individual pode fazer frente ao poder dos capitalistas de contratar e demitir à vontade, ou a predisposição do policial de atirar, bater e prender.

Os trabalhadores superaram historicamente sua atomização — e os desequilíbrios de poder que resultam dela — em ondas de atividade perturbadora coordenada. Mas os trabalhadores enfrentam uma situação contraditória: eles conseguem agir coletivamente se confiarem uns nos outros, porém podem confiar um no outro — frente a enormes riscos para si mesmos e os outros — apenas se essa confiança já tiver sido concretizada em ação coletiva. Se a atividade revolucionária é excepcional, não é porque a ideologia divide os trabalhadores, mas sim porque, a não ser que a ação revolucionária já esteja acontecendo, é suicida tentar “ir sozinho”. As ideias em nossas cabeças, independentemente de quão revolucionárias elas são, servem principalmente para justificar — e também para nos ajudar a lidar com — o sofrimento infligido por esta situação.

O problema aparentemente indissolúvel da luta, da situação contraditória, é finalmente resolvido pela própria luta, pelo fato de a luta se desenvolver com o passar do tempo. Computacionalmente, esta solução pode ser descrita como o resultado possível de um iterado dilema dos prisioneiros9. Nosso termo é espontaneidade.

  1. Espontaneidade

Espontaneidade é normalmente compreendida como uma ausência de organização. Algo espontâneo surge de um impulso momentâneo, como que ocorrendo naturalmente. Os marxistas da 2ª Internacional pensavam que a revolta dos trabalhadores era espontânea neste sentido: era uma reação natural à dominação capitalista, à qual o partido deve dar forma. Essa noção se baseia no que pode ser chamado de um significado derivativo do termo espontaneidade. No século XVIII, quando Kant descreveu a unidade transcendental da apercepção — o fato de eu estar consciente de mim mesmo como tendo minhas próprias experiências –, ele chamou isto de um ato espontâneo10. Kant se referia a algo oposto do natural. Um ato espontâneo é um ato que é tomado livremente. De fato, a palavra espontâneo deriva do latim sponte, que significa “por iniciativa própria, livremente”. Neste sentido, espontaneidade não é sobre agir compulsiva ou automaticamente. É uma questão de agir sem coação externa. Nós participamos das relações sociais capitalistas todos os dias: ao irmos ao trabalho, ao fazermos compras, etc. Mas somos livres para decidir não fazê-lo, independente de quais forem as consequências (de fato, as consequências são às vezes graves, porque nossa participação no capitalismo não é uma escolha, mas sim uma imposição)11.

Quatro pontos seguem, a partir desta reinterpretação do termo:

  1. Espontaneidade — precisamente porque é de livre arbítrio — é inerentemente imprevisível. Por este motivo, não pode haver uma teoria fixa da luta. Só pode haver uma fenomenologia da experiência da revolta. Obviamente, a revolta tem uma relação com a crise, econômica ou não, já que as crises tornam os modos de vida existentes dos proletários insustentáveis. Mas a relação entre a crise e a revolta nunca é mecânica. A revolta permanece fundamentalmente indeterminada ou sobredeterminada: nunca acontece exatamente quando deveria e, quando acontece, frequentemente surge dos lugares mais improváveis. O descontentamento pode estar latente, mas aí um assassinato cometido pela polícia ou um aumento no preço do pão de repente “desencadeia” a revolta. Entretanto, ninguém sabe antecipadamente o que desencadeará o evento em qualquer caso. Isto não quer dizer que a revolta não é planejada — ou que os militantes não desempenham um papel na ignição de revoltas. De fato, os militantes tentam provocar revoltas o tempo todo. O ponto é que seu sucesso está em algo fora deles mesmos (esse algo se revela em momentos-chave, quando o material humano sobre o qual os militantes trabalham de repente para de responder à sua micro-administração — ou uma luta salta em uma direção imprevista, ou murcha)12. Quem pode prever quando comparecer a uma praça levará a outro protesto, e quando este explodirá em uma guerra civil?
  2. Espontaneidade — sendo uma ruptura com o cotidiano — é também necessariamente disruptiva. A espontaneidade aparece como um conjunto de atos disruptivos: greves, ocupações, paralisações, saques, rebeliões, autorredução de preços e auto-organização mais em geral. Mas a espontaneidade não é simplesmente uma mistura destes ingredientes. A espontaneidade tem uma história, e na história da espontaneidade, há uma primazia de táticas específicas, em dois sentidos. (a) Táticas são o que reverbera, nos locais de trabalho ou vizinhanças, países ou até mesmo continentes. Alguém põe fogo em si mesmo, ou alguns indivíduos ocupam uma praça pública. Espontaneamente, outras pessoas começam a fazer algo similar. No decorrer dos eventos, os proletários adotam uma determinada tática para suas próprias experiências, mas o que é chave é que — na medida em que estão adotando táticas que são tiradas de outro lugar — há uma interrupção do fluxo contínuo do tempo. A história local se torna algo que só pode ser articulada globalmente. (b) A primazia da tática também é dada no fato de as pessoas participarem em ondas de atividade perturbadora, mesmo enquanto debatem o porquê de fazê-lo. Os participantes podem fazer exigências contraditórias; as mesmas táticas são usadas para fins diferentes, em lugares diferentes. Enquanto isso, na medida em que as lutas crescem em intensidade e extensão, os participantes se tornam mais corajosos em suas demandas — ou não fazem demanda alguma. As barreiras entre as pessoas começam a serem quebradas. Com a quebra dessas barreiras, a sensação de poder coletivo aumenta. Os riscos de participação caem na medida em que mais e mais pessoas participam. Em seu desenvolvimento, a luta constrói suas próprias fundações.
  3. A espontaneidade não é apenas perturbadora, ela também é criativa. A espontaneidade gera um novo conteúdo de luta, que é adequado à experiência cotidiana dos proletários. Estas experiências estão sempre mudando, junto com mudanças nas relações sociais capitalistas (e, de modo mais geral, na cultura). É por isso que a revolta que surge de dentro — espontaneamente — tende a se espalhar mais ampla e violentamente do que a revolta que vem de fora — de militantes, etc. Isto é verdade mesmo quando militantes intervêm com base em suas próprias experiências anteriores de revolta (nos anos 60, muitos militantes denunciaram a sabotagem e o absenteísmo como formas “infantis” de luta; de fato, pressagiaram uma onda enorme de greves selvagens13). Assim, os militantes se colocam em uma posição difícil. Os militantes são os traços humanos de conflitos passados, móveis através do espaço e do tempo. Se há histórias nacionais/locais de luta, isso é em parte porque militantes estabelecem continuidades de experiência. Formações militantes fortes podem se tornar agentes de intensificação no presente; no entanto, ao tentar aplicar lições aprendidas no passado para um presente em constante mudança, os militantes correm o risco de trivializar o novo, no momento de seu surgimento. Esta é uma posição perigosa, na medida em que para nós permanece axiomático que temos que depositar nossa confiança no novo como a única saída das relações sociais capitalistas.
  4. A revolta espontânea envolve não só a criação de um novo conteúdo de luta, mas também necessariamente de novas formas de luta, adequadas ou correspondentes com esse conteúdo. Hegel disse uma vez “sobre a antítese da forma e do conteúdo”: “é essencial lembrar que o conteúdo não é sem forma, mas que têm a forma dentro de si, do mesmo modo como a forma é algo externo a ele”14. Essa forma pode ser incipiente a princípio; pode existir apenas em potência, mas se revela conforme as lutas se estendem e intensificam. Aqui também há algo criativo — o surgimento de uma forma sem precedente histórico. A história é testemunha deste fato repetidas vezes: lutas recém-surgidas desprezam as formas existentes. Ao invés disso, geram suas próprias formas, que são então desprezadas, por sua vez, em ondas de revolta futuras. Esta característica da espontaneidade, sua tendência à inovação formal, enfraquece qualquer relato de comunização que faça parecer como se uma revolução comunizadora fosse fundamentalmente sem forma. Não podemos saber que formas de organização espontânea terão um papel em — e terão de ser superadas no momento da — comunização.

Contra as teorias revolucionárias do passado, podemos dizer hoje que a organização não é externa à espontaneidade. Pelo contrário, a revolta em massa é sempre organizada. Para dar a este termo uma definição adequada a seu papel na teoria revolucionária, podemos dizer que a organização é o acompanhamento necessário à coordenação e a extensão da atividade disruptiva espontânea. Mas isso não quer dizer que a organização é sempre formal. Também pode ser completamente informal e, de fato, nos níveis mais altos, sempre é informal. Coordenação significa a disseminação das táticas boca a boca, por meio de jornais, rádio, televisão, vídeos de celular, etc. (não que qualquer tecnologia em particular seja necessária: uma onda de greves global já se espalhou por todo o Império Britânico nos anos 1930; as tecnologias simplesmente fornecem oportunidades diferentes para a luta).

Em qualquer revolta ocorrem debates acerca da questão da organização: “qual é o melhor jeito de coordenar ou estender esta atividade disruptiva específica?” As respostas a essa pergunta sempre são específicas ao contexto da revolta em questão. Muitos indivíduos, seja por ignorância ou medo, se fazem perguntas diferentes: “como podemos acabar com esta perturbação?”, “como podemos encerrá-la ou conseguir uma vitória, para podermos retornar às misérias familiares de nossas vidas cotidianas?” Superar a ignorância e o medo — passar a confiar um no outro para agir e fazê-lo de maneira coordenada, com centenas, milhares, milhões e, finalmente, bilhões de pessoas –, este problema de coordenação não pode ser resolvido com antecedência. Só é resolvido em e através de uma sequência desenvolvente de lutas.

2. Mediação

Normalmente nos deparamos com o termo mediação em sua forma negativa, como imediação, entendida como “agora, de uma vez”. Novamente, este significado é derivativo. Imediação significa, antes de tudo, falta de mediação. O que, então, é mediação? É a presença de um termo interventor (em seu uso primitivo, a palavra “mediação” descrevia a posição de Jesus Cristo, que interviu entre Deus e o homem). Falar da imediação da revolução não significa exigir a revolução “imediatamente” no sentido de “agora mesmo”, mas sim, “imediatamente” no sentido de “sem um termo intermediário”. Mas que termo está ausente, neste caso?

Deve estar claro que a imediação da revolução não é simplesmente uma questão de falta de organização (embora toda revolução seja caótica). Pelo contrário, atividades disruptivas devem ser altamente coordenadas e extensas — em uma palavra, organizadas — de modo a precipitar uma deserção das forças armadas (que é a condição sine qua non de um momento revolucionário). Este ponto também não é esclarecido ao dizer que a revolução ocorrerá sem um período de intermediação ou de transição. Porque, de fato, haverá inevitavelmente uma transição, mesmo que não haja uma “economia de transição” ou um “Estado de transição” no sentido que estes termos tinham no século XX. A comunização das relações sociais entre 7 bilhões de pessoas levará tempo. Envolverá picos repentinos, bem como recuos devastadores, zonas de liberdade surgindo ao lado de zonas de não-liberdade, etc. Mesmo que os comunizadores acabassem com a contrarrevolução, um período de desconstrução e reconstrução se seguiria inevitavelmente. As relações entre indivíduos, não mais mediada por mercados e Estados, teria de se realizar, no mundo, como uma transformação completa das infraestruturas materiais15.

Para nós, não é tanto a revolução como um processo que deve ser compreendida com a categoria da “imediação”. Falar de imediação, com relação à revolução, é simplesmente um atalho para falar que a revolução abole as mediações do mundo moderno. Falar da imediação do comunismo é, então, afirmar que, diferentemente dos revolucionários do passado, os comunizadores terão de levar a sério a coerência do mundo moderno. O trabalhador, a máquina, a fábrica, a ciência e a tecnologia: nenhum destes termos aparece como um bom absoluto, em oposição ao capital e ao Estado como mal absoluto. Não há ordenamento neutro deste mundo que possa ser tomado pela classe trabalhadora e administrado em seu interesse. Logo, a revolução não pode ser uma questão de encontrar novas maneiras de mediar as relações entre os trabalhadores ou entre os seres humanos e a natureza, o Estado e a economia, homens e mulheres, etc.

Ao invés disso, a revolução só pode ser um conjunto de ações que abolem as próprias distinções nas quais tais mediações se baseiam. O capitalismo é um conjunto de separações, ou cortes ontológicos — entre seres humanos e suas capacidades mais íntimas — que são subsequentemente mediados pelo valor e pelo Estado. Desfazer essas mediações é destruir as entidades que os fundamentam: de um lado, reconectar todos às suas capacidades, de modo que nunca possam ser separados à força e, de outro lado, empoderar cada indivíduo singular para assumir ou se despojar de qualquer capacidade específica, sem perder o acesso a todas as outras.

Os meios reais de reconectar indivíduos as suas capacidades, fora do mercado e do Estado, são impossíveis de se prever. Mas isso não quer dizer que a existência humana tomará uma qualidade inefável, um fluxo puro. Novas mediações serão inevitavelmente erguidas dos escombros das antigas. Logo, o comunismo não significará o fim da mediação. Significará o fim das mediações que nos prendem em nossos papéis sociais: gênero, raça, classe, nação, espécie. Do mesmo modo que o fim da dominação abstrata não significará o fim da abstração, a superação destas mediações deixará muitas outras intactas: a linguagem, a música, jogos, etc.

Contudo, isso não quer dizer que estas mediações não serão fundamentalmente transformadas pelo fim da socialização associal. Peguemos a linguagem, por exemplo, como a mediação primordial: a linguagem foi transformada pelo comércio mundial, que levou a uma enorme redução no número de idiomas, e a correspondente dominação de poucos: espanhol, inglês, mandarim. Não sabemos se a superação deste mundo continuará a maximizar a comunicação entre agrupamentos sociais ao redor do mundo. Talvez, ao invés disso, resulte em uma proliferação de idiomas. A compreensão universal pode ser sacrificada para tornar as palavras mais adequadas a formas de vida mutuamente ininteligíveis.

3. Ruptura

Durante períodos de calmaria, a revolta ocorre. Mas permanece desarticulada. A luta entre classes eclode, aqui e ali, mas então diminui. Períodos de calmaria duram décadas, mas eventualmente, chegam a um fim. O ressurgimento da luta de classes se anuncia em uma enxurrada de atividades. Uma nova sequência de lutas se inicia. Ondas de atividade proletária fluem e refluem, durante anos, conforme conteúdo novo e formas novas de luta se desenvolvem. A intensidade da luta aumenta, embora nunca de maneira linear, conforme os proletários se conectam, estendendo suas atividades disruptivas. A articulação dessas atividades começa a revelar os contornos daquilo que deve ser superado. Desta maneira, há uma tensão em direção à ruptura, que lança fagulhas em todas as direções. Uma ruptura é, por definição, uma quebra — uma quebra que é de natureza qualitativa — mas uma quebra com ou no quê? Onde localizamos a ruptura que é sinônima do surgimento de um período revolucionário?

É muito fácil falar de disrupção espontânea como se ela mesma fosse uma ruptura, isto é, com o cotidiano. A revolução seria então compreendida como um acúmulo de rupturas. Há uma certa verdade nesta perspectiva. Afinal, as lutas nunca se estendem por um caminho linear de intensidade crescente. Pelo contrário, a luta se move por meio de descontinuidades. Seu dinamismo dá origem a mudanças periódicas nos próprios termos da luta: em um momento, pode ser trabalhadores contra patrões, mas no próximo, se torna inquilinos contra proprietários, a juventude contra a polícia, ou um confronto entre setores auto-organizados (todas essas lutas podem ocorrer simultaneamente também). Esta instabilidade — na própria base sobre a qual os indivíduos são chamados para confrontarem um ao outro — é o que torna possível pôr tudo em questão, tanto em geralmente como em cada especificidade.

Contudo, estes termos devem ser mantidos separados: de um lado, a disrupção espontânea e, de outro, a ruptura, que racha a própria disrupção espontânea. A ruptura força todo indivíduo que está envolvido na luta a tomar um lado: decidir se se alinha ao movimento comunista — como o movimento para a destruição prática deste mundo — ou do lado da continuação da revolta, na base do que é. Nesse sentido, a ruptura é um momento de partidarismo, de tomar partido16. É uma questão de se filiar ao partido e de convencer outros a fazerem o mesmo (de modo algum é uma questão de liderar “o povo”). Do mesmo modo que separamos a espontaneidade da ruptura, devemos estabelecer uma distinção entre organização, que é própria da espontaneidade, e o partido, que é sempre o partido da ruptura17.

O partido cava seu caminho por meio das organizações proletárias, já que defende a destituição da ordem social (e então, também, o desfazer das distinções sobre as quais são fundadas as organizações proletárias). A diferença entre as organizações e o partido é, portanto, a diferença entre, de um lado, comitês de desempregados, assembleias de bairro, membros de sindicatos — que organizam a disrupção das relações sociais capitalistas — e, de outro lado, grupos de partisans18 — que reconfiguram redes de transporte e comunicação e organizam a criação e livre distribuição de bens e serviços. A tática comunista destrói as próprias distinções (por exemplo, entre empregados e desempregados) nas quais se baseiam as organizações proletárias19.

E então, enquanto revoltas perturbam o mundo, a ruptura é a sua derrubada (logo, o termo padrão para a ruptura: revolução). Esta derrubada tem dimensões quantitativas e qualitativas, que a distinguem da revolta. Por exemplo, a escala da revolta é tipicamente restrita; ao passo que a revolução hoje somente pode significar 7 bilhões de pessoas tentando encontrar maneiras de se reproduzirem, de maneiras não capitalistas. Destes bilhões, mesmo uma minoria ativa teria de estar nas centenas de milhões (isto é, se os indivíduos forem capazes de determinar o decorrer dos eventos, o que por si sugere que ainda estamos longe de um momento revolucionário). A revolução exigirá que bilhões de indivíduos tragam diversos aspectos de suas vidas a uma luta aberta, que termina com esses indivíduos pondo em questão a totalidade de suas vidas. A ruptura põe a vida mesma em qeustão, mas de uma maneira que nos permite continuar vivendo.

Segundo a Théorie Communiste, os revolucionários de uma época anterior não tinham um conceito de ruptura. Eles supostamente viam a revolução como uma questão de lutas “crescerem”, isto é, de lutas se estenderem por toda a sociedade e se intensificarem até um ponto crítico, em que se transformariam em uma revolução. No decorrer do século XX, muitas teorias deste tipo foram propostas (o termo em si aparentemente vem de Trotsky, mas a ideia é mais comum entre autonomistas). Contudo, esses tipos de teorias não eram muito comuns20. A maioria dos revolucionários, incluindo Trotsky, traçou sua distinção entre revolta e ruptura.

Então, por exemplo, na Itália, no decorrer do biennio rosso (1919–20), quando a revolução parecia uma possibilidade real, Amadeo Bordiga, futuro líder do Partido Comunista Italiano, anunciou o seguinte:

Não gostaríamos que as massas trabalhadoras assumissem a ideia de que tudo o que precisam para conquistar as fábricas e livrar-se dos capitalistas é constituir conselhos. Esta seria, de fato, uma ilusão perigosa. A fábrica será conquistada pela classe trabalhadora — e não apenas pela força de trabalho empregada nela, o que seria uma medida muito leve e não comunista — apenas depois que a classe trabalhadora como um todo tiver se apoderado do poder político. A menos que ela tenha feito isso, a Guarda Real, a Polícia Militar, etc. — em outras palavras, o mecanismo de força e opressão que a burguesia tem à sua disposição, seu aparelho de poder político — fará com que todas as ilusões de poder sejam desfeitas.21

Em essência, Bordiga (como muitos comunistas do século XX), argumentava assim: ao tomar as fábricas e protestar nas ruas, às vezes é possível trazer a sociedade a um impasse, mas não a uma ruptura. A ruptura só ocorrerá quando os proletários arriscarem a guerra civil, em uma tentativa de transferir permanentemente o poder a eles mesmos. Seguia que a principal tarefa do partido era, no momento crítico, distribuir armas entre os trabalhadores e exigir uma transferência de poder para estes grupos armados. De fato, se pode pensar em “armar os trabalhadores” como a “tática programática” chave (outras táticas deste tipo incluíam estabelecer grupos políticos de delegados revogáveis)22. A ligação entre este conceito e o de Bologna, citado anteriormente, deve ser aparente.

Assim, está claro que os revolucionários de uma época anterior tinham um conceito de ruptura (o revolucionário era aquele que, em toda oportunidade, proclamava o famoso lema de De Sade: “mais uma tentativa, camaradas…”). Não obstante, é verdade que, para nós, tal conceito é inadequado. Uma revolução hoje não pode ocorrer por meio de grupos armados tomando o poder estatal — ou até mesmo derrubando-o, segundo a concepção anarquista — com o objetivo de estabelecer uma sociedade de trabalhadores associados. Mesmo se esse tipo de revolução continua atraente para alguns, está predicada na vontade e na capacidade dos trabalhadores se organizarem em torno de sua identidade como trabalhadores, ao invés de outras identidades (isto é, nacionalidade, religião, raça, gênero, etc.). Trabalhadores só compartilham um interesse comum na medida em que podem projetar uma solução universal para seu problema de coordenação (“um ataque contra um é um ataque contra todos” não é universalmente verdadeiro).

Enfrentando as pressões dos mercados de trabalho competitivos, os trabalhadores construíram seu interesse em comum, no decorrer do século XX, ao construírem organizações de trabalhadores, que eram unidas por meio do movimento operário. Esse movimento forjou — dentre uma grande variedade de experiências específicas dos trabalhadores — um interesse realmente geral. Mas a realidade deste interesse geral estava predicada em duas coisas. Primeiro, estava predicada em conquistar ganhos reais, tanto na sociedade capitalista como contra um antigo regime, que buscava excluir os trabalhadores da política. Segundo, estava predicado em uma experiência vivida por muitos proletários: eles se identificavam com seu trabalho, como o traço definidor de quem eram (e imaginavam que, com a extensão do sistema fabril a todo o mundo, esta identidade se tornaria uma condição humana comum). Os trabalhadores sentiam que compartilhavam um destino comum como a força vital da sociedade moderna, que estava crescendo o tempo todo.

Tudo isso agora está no passado. Uma acumulação enorme de capital tornou o processo produtivo cada vez mais eficiente, tornando os trabalhadores cada vez mais supérfluos. Nestas condições, as economias capitalistas cresceram lentamente, devido a sobreprodução crônica; ao mesmo tempo, a maioria dos trabalhadores acha difícil obter qualquer ganho real, em um contexto de altos níveis de desemprego. Além disso, esta superfluidade dos trabalhadores encontrou seu correspondente em uma experiência mudada do próprio trabalho. Na medida em que estão empregados, a maioria dos proletários não se identificam com seus trabalhos como o traço definidor de quem são. Ou são periféricos a um processo de produção mais ou menos automatizado — e logo não conseguem mais se ver como a força vital da sociedade moderna — ou estão excluídos completamente da produção, e labutam em empregos sem futuro no setor de serviços. Isso não quer dizer que não há mais proletários que sonham em realizar trabalhos similares em um mundo melhor, onde podem organizar seu trabalho democraticamente. Porém, esta minoria não pode dizer mais que representa o futuro da classe como um todo — especialmente quando tantos proletários estão ou subempregados ou desempregados, ou então perdidos no setor informal, no qual 70% dos trabalhadores são autônomos, porque não conseguem encontrar empregos.

Como resultado destas transformações, o horizonte revolucionário da luta é ele mesmo transformado. Deve ser outra coisa, diferente do que foi. Não podemos nem permanecer como somos, nem tomar as coisas como elas são. Isso é ainda mais verdadeiro, na medida em que os aparatos da sociedade moderna (fábricas, redes de estradas e aeroportos, etc.) — que os proletários ajudaram a construir — acabaram não pressagiando um novo mundo de liberdade humana. Pelo contrário, estes aparatos estão destruindo as próprias condições da vida humana na Terra. É difícil dizer, portanto, o que constituiria uma tática comunizadora, substituindo a tática programática por excelência, a saber, o “armamento dos trabalhadores” ou a “generalização da luta armada”. Sabemos que essas táticas serão necessárias: terão de destruir a propriedade privada e o Estado, abolir a distinção entre a esfera doméstica e a economia, etc. Mas isso não nos diz nada sobre as táticas em si. Quais realizarão o rompimento?

No fim, as táticas comunizadoras serão as táticas que finalmente destruírem o elo entre encontrar trabalho e sobreviver. Reconectarão os seres humanos e suas capacidades, de modo a tornar impossível cortar esses laços novamente. No decorrer da luta, um processo pode se desenvolver, em algum lugar do mundo, que parece ir até o final, para pôr um fim, de uma vez por todas, às relações sociais capitalistas. Exatamente como hoje, os proletários adotam e adaptam qualquer tática com que se identificam, então também, alguns proletários adotarão estas táticas comunizadoras. Contudo, estas táticas não estenderão a luta. Pelo contrário, dividirão esta luta, voltando-a contra ela mesma.

Se houverem tais avanços, em qualquer lugar do mundo, é possível imaginar que, como uma característica do partidarismo, os partidos comunistas formarão (ou se alinharão às novas táticas). Eles podem não se chamar de partidos, e podem não se referir a suas táticas como táticas comunizadoras. Não obstante, haverá uma separação daqueles que, na luta, defendem e aplicam táticas revolucionárias, sejam elas quais forem. Não há necessidade de decidir com antecedência como o partido será, qual será sua forma de organização, se ele deve ser formalizado ou não, ou se é apenas uma orientação compartilhada entre muitos indivíduos. O comunismo não é uma ideia ou um slogan. É o movimento real da história, o movimento que — na ruptura –tateia por sua saída da história.

Conclusões

O conceito de comunização demarca uma orientação: uma orientação às condições da possibilidade do comunismo. O conceito nos encoraja a nos concentrarmos no presente, a descobrirmos o novo mundo através da crítica de tudo que existe atualmente. O que teria de ser derrubado ou desfeito, para o comunismo se tornar uma força real no mundo? Há tanto uma maneira dedutiva e uma indutiva de abordar esta questão: (1) o que é o capitalismo e, portanto, o que um movimento comunista teria de abolir para o capitalismo deixar de existir? (2) O que, nas lutas e experiências dos proletários, aponta além ou coloca o problema do comunismo? De fato, nossas respostas a esta primeira pergunta são formadas por nossas respostas à segunda. Os proletários sempre estão lutando contra o capital de maneiras novas e inesperadas, nos forçando a perguntar, novamente, “O que diabos é o capital que as pessoas estão tentando destruir?” A teoria da comunização se posiciona, em relação a estas questões, como um conjunto de proposições acerca das condições mínimas de abolir o capitalismo. Estas proposições podem ser enumeradas, conforme segue:

(1) as crises em desenvolvimento do capitalismo fazem com que as lutas proletárias tanto se proliferam como se transformem quanto a seu caráter. (2) Estas lutas tendem a se generalizar pela sociedade, sem se tornar possível unificar as lutas concomitantes sob uma única bandeira. (3) Para as lutas fundamentalmente fragmentadas se traduzirem em uma revolução, medidas comunizadoras terão de ser adotadas, como a única maneira possível de levar essas lutas adiante. (4) Assim, se tornará necessário abolir as divisões de classe — bem como o Estado, as distinções de gênero, raça, etc. — no próprio processo de revolução (e como a revolução). Finalmente, (5) uma revolução estabelecerá, portanto, não uma economia ou um Estado de transição, mas sim um mundo de indivíduos, definidos em sua singularidade, que se relacionam um com o outro de múltiplas maneiras. Este último ponto será verdade, mesmo se estes indivíduos herdarem um mundo brutal, devastado pela guerra e pela catástrofe climática — e não um paraíso de fábricas automatizadas e vida fácil.

Devemos reconhecer que este conjunto de proposições é um tanto fraco: um ponto de partida, e não uma conclusão. Deveria ser óbvio: estas proposições não nos dizem nada sobre se uma revolução comunista vai realmente ocorrer. Tendo passado por uma topologia conceitual da estratégia revolucionária, a pergunta continua: isso afeta o que fazemos? Estas reflexões tem alguma consequência estratégica?

Hoje, aqueles que estão interessados na teoria revolucionária se veem divididos entre os termos de uma falsa escolha: ativismo ou attentisme23. Parece que só podemos agir sem pensar criticamente, ou pensar criticamente sem agir. A dissolução desta contradição performativa é uma das tarefas da teoria revolucionária. Como é possível agir enquanto se compreende os limites dessa ação? Em toda luta, há uma tensão à unidade, que é dada no ímpeto de coordenar a atividade diruptiva, como a única esperança de conseguir alguma coisa. Mas, na ausência de um movimento operário — que foi capaz de subsumir a diferença em uma uniformidade fundamental — esta tensão à unidade é frustrada. Não há maneira de resolver o problema da coordenação com base no que somos. Ser um partidário da ruptura é reconhecer que não há trabalhador coletivo — um sujeito revolucionário — que está de alguma forma oculto, mas já presente em toda luta.

Pelo contrário, a intensificação das lutas revela não uma unidade pré-existente, mas sim uma proliferação conflituosa da diferença. Esta diferença não só é sofrida; é frequentemente desejada por participantes na luta. Sob estas condições, as unidades fracas desta ou daquela frente anti-governo — que são impostas em tantas diferenças — simplesmente oferecem mais uma confirmação que, na luta, permanecemos desunidos. Nesse sentido, podemos até dizer que, hoje, todas as lutas afastam da revolução — exceto que é só pela ativação, intensificação e as tentativas fracassadas de generalização que a unificação pode um dia se tornar possível, em e através de uma ruptura revolucionária com a própria luta.

Esta observação suscita um paradoxo. Não há nada para nós fazermos senão apoiar o aumento e a intensificação das lutas. Como todos os outros engajados na luta, podemos almejar introduzir um conteúdo novo em nossas lutas. Podemos arriscar táticas e formas de organização novas (ou podemos adotar táticas e formas de organização de outros lugares, quando ocorrerem de uma maneira que soe bem para nós). Podemos avançar o que acreditamos serem as palavras de ordem do momento. Em todo caso, entendemos que os limites de nosso próprio poder são os limites da participação de todos os outros; a extensão de sua coordenação, o grau de sua confiança mútua, e a intensidade de sua disrupção.

Mas também reconhecemos que, conforme participamos em lutas — conforme nos organizamos — somos empurrados ou fixados em identidades das quais estamos fundamentalmente alienados. Ou não podemos mais afirmar estas identidades, ou então não queremos, ou então reconhecemos que são seccionais e, por esse motivo, impossíveis de serem adotadas pela ampla massa da humanidade. As lutas nos jogam uns contra os outros — mas frequentemente não por motivos que vivenciamos como absolutamente necessários. Pelo contrário, às vezes, percebemos nossas diferenças como não essenciais — o resultado de uma diferenciação divisória de status ou identidade, no capitalismo.

Ao enfrentar estes limites da luta, somos completamente impotentes para superá-los. O problema para ativistas é que uma consciência dos limites aparece como perda e derrota. Sua solução é forçar desesperadamente uma resolução. Reconhecemos, em contrapartida, que a luta não será ganha diretamente, ao saltar por sobre os limites. Ao invés disso, teremos de nos deparar como os limites, repetidas vezes, até eles poderem ser formalizados. A impossibilidade de resolver o problema da coordenação — ainda que permanecendo o que somos, nesta sociedade — deve ser teorizada dentro da luta, como um problema prático. Os proletários devem vir a perceber que o capital não é simplesmente um inimigo externo. Junto do Estado, é nosso único modo de coordenação. Nos relacionamos um ao outro através do capital; é nossa unidade-em-separação. Apenas com base em tal consciência — não de classe, mas do capital — nossa revolução se tornará possível, como a derrubada desta sociedade.

Enquanto isso, o que buscamos não são respostas prematuras ou resoluções forçadas, mas uma terapia contra o desespero: é apenas enfrentando o limite que os proletários formalizarão a pergunta, para qual revolução é a resposta. A nossa oferta, do jeito que está, é, portanto, escassa, baseada mais em argumentos especulativos do que em evidências concretas. Exceto entre uma minoria minúscula de participantes, um conceito de comunicação (ou um conceito com suas características essenciais) ainda não surgiu nas lutas. Ainda estamos falando de um novo ciclo de luta na linguagem desgastada do antigo. Podemos refinar essa linguagem da melhor maneira possível, mas precisamos reconhecer que ela está quase, se não completamente, esgotada.

1 Sergio Bologna, “Class composition and the theory of the party at the origins of the workers’ council movement”, 1972.

2 Ver “Uma História de Separação”, Endnotes.

3 A greve em massa do início do século XX tinha pouco em comum com o sonho da greve geral, o grand soir, do final do século XIX.

4 Gilles Dauvé e Denis Authier, The Communist Left in Germany, 1918–1921, 1976, capítulo 4.

5 Ver Philippe Bourrinet, “The workers’ councils in the theory of the Dutch-German communist left”.

6 Carl Schorske, German Social Democracy, 1905–1917, Harvard University Press, 1955, p. 39.

7 Gangues e grupos de extorsão agem para garantir que alguns proletários consigam “bons empregos” à custa de outros.

8 Nem todos que são dependentes do trabalho conquistaram a autonomia que vem com ele. Por exemplo, mulheres proletárias sempre trabalharam, pelo menos durante parte de suas vidas. Mas, durante outra parte de suas vidas (especialmente antes dos anos 70), eram rebaixadas a uma esfera doméstica, onde não recebiam salários. Mesmo quando mulheres recebiam salários, seus salários eram às vezes entregues diretamente a seus maridos. Deste modo, o desenvolvimento do modo de produção capitalista impediu as mulheres de conquistarem a autonomia de pais e maridos que homens jovens foram capazes de conseguir, logo cedo. As mulheres, hoje, receberem e manterem seus próprios salários lhes proporcionou um aumento na autonomia, embora elas ainda sejam sobrecarregadas com a maior parte do trabalho doméstico.

9 Ver, por exemplo, Robert Axelrod, The Evolution of Cooperation, Basic Books, 1984.

10 Ver Robert Pippin, Hegel’s Idealism, Cambridge University Press, 1989, p. 16–24.

11 Indivíduos agem espontaneamente, neste sentido, todo o tempo. Às vezes tem um plano, às vezes não. Estamos interessados, no entanto, não em tais atos individuais de liberdade, mas sim nas ações coletivas de espontaneidade. Isto é, estamos interessados, aqui, apenas em atividades de massa.

12 Destacar isso não é denegrir militantes: é para nos lembrar que embora os militantes sejam um agente ativo em qualquer onda de luta, eles não têm a chave para ela. Eles resolvem o problema da coordenação tanto quanto computadores resolvem problemas matemáticos: ao tentarem todas as soluções possíveis, até que uma se encaixe.

13 Greve selvagem ocorre sem a participação do, ou à revelia do sindicato. (N. do tradutor)

14 Hegel, The Encyclopedia Logic, Hackett, 1991, § 133, p. 202.

15 Ver “Logistics, Counterlogistics, and the Communist Project”, nesta edição (Endnotes 3).

16 No 18 de Brumário, Marx escreve sobre uma polarização de forças sociais em um “Partido de Ordem” e um “Partido de Anarquia”. Aqui, não é uma questão de grupos sociais pré-existentes, mas sim de grupos emergentes encontrando suas formas organizacionais na própria luta: a burguesia e seus apoiadores se unem em torno de uma força que oferece a melhor chance de restaurar a ordem, enquanto o proletariado se reúne em torno de uma força de que está tentando criar uma situação “que torna todo retorno ao passado impossível”.

17 O conceito do partido simplesmente registra este fato: como a revolta espontânea em si, a ruptura não avançará automaticamente, de uma profunda ou até mesmo “crise final” da relação capital/trabalho. O proletariado não se encontrará repentinamente com as alavancas do poder, e depois desse ponto será apenas uma questão de descobrir o que fazer com elas. Pelo contrário, a revolução será o projeto de uma fração da sociedade, isto é, o partido, que resolve o problema da coordenação da única maneira possível — com a abolição da sociedade de classes.

18 Um membro de um bando de tropas irregulares e leves que atuam atrás das linhas de ocupação inimigas em operações de assédio ou sabotagem; um guerrilheiro

19 É difícil frisar este aspecto rigorosamente. Está claro, na medida em que lutas auto-organizadas espontaneamente constroem suas próprias fundações, elas frequentemente conectam indivíduos um ao outro de maneiras que contradizem sua unidade-em-separação para o capital. Por exemplo, indivíduos podem ocupar um prédio do governo, mesmo que não tenham conexão cotidiana a ele. Ao ocupá-lo, podem se organizar de acordo com um traço compartilhado que não tem significado algum para o capital. O ponto-chave aqui é que as lutas organizadas espontaneamente perturbam a unidade-na-separação do capital, mas não a superam de modo permanente. Assim, a tendência de distinções de gênero, raça, nacionalidade, etc., reaparecerem nas ocupações de quarteirões em 2011, isto é, precisamente onde essas distinções deviam ter sido tornadas inoperantes.

20 Os insurrecionistas podem ser os verdadeiros herdeiros da teoria do “crescimento” da revolução. Para eles, a intensificação das lutas existentes já é a ruptura. O conceito de revolução é portanto abandonado como excessivamente “holístico” — uma falsa universalização no tempo e no espaço. De fato, as lutas se universalizam — não ao se juntar, de modo que todos possam marchar por detrás de uma bandeira verdadeira — mas sim ao colocar questões universais sobre a superação deste mundo. Desse modo, as próprias lutas constroem o universal, não como um objeto abstrato de uma revolução idealizada, mas como o objeto concreto de uma revolução real.

21 Amadeo Bordiga, “Tomar a Fábrica ou Tomar o Poder”, 1920 (tradução disponível em: https://tinyurl.com/yc2sgbms).

22 Alguns comunistas tomaram um rumo diferente. Encaram como sua tarefa principal identificar e infiltrar o que percebem como o(s) setor(es) econômico(s) “chave”, a parte que representa o todo. Militantes nesse setor ainda poderão supostamente, no momento correto, intervir decisivamente, produzir a revolução, ou evitar a traição da revolução (que devia vir de outro lugar). Ver, por exemplo, Nihilist Communism, de Monsieur Dupont (Ardent Press, 2002), sobre a questão do “proletariado essencial”. Estas são falsas soluções para problemas reais, mas novamente, por esse motivo, encontrarão suas soluções reais no devido tempo.

23 Imobilismo. (Nota do tradutor)

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