Doutrina do Corpo Possuído pelo Demônio

Battaglia Comunista [1]

Proelium Finale
19 min readJan 5, 2018

É vital sermos bastante claros sobre a questão do capitalismo de Estado para reiniciarmos as bússolas que perderam seus pontos de referência. [2]

Conseguimos reunir muitas contribuições a essa questão da gama de conceitos tradicionais da escola marxista que mostram que o capitalismo de Estado não é apenas o último aspecto do mundo burguês, mas que suas formas, mesmo as completas, são bastante antigas e correspondem ao próprio surgimento do modo de produção capitalista.

Elas serviram como os fatores principais na acumulação primitiva e precederam por muito o ambiente fictício e convencional do empreendimento privado, da livre iniciativa e outras coisas finas que são encontradas muito mais frequentemente no campo da apologia do que no mundo real.

Como já dissemos, há muitos grupos no campo da esquerda comunista anti-stalinista que não veem as coisas desta maneira. Dizemos para eles, com base em textos anteriores, por exemplo: “Onde for, onde houver a forma econômica do mercado, o capitalismo é uma força social. É uma força de classe. E tem o estado político à sua disposição”. [3]

Permita-nos acrescentar a fórmula que, para nós, expressa muito bem os aspectos mais recentes da economia mundial: “O capitalismo de Estado não é uma subjugação do capitalismo ao Estado, mas uma subjugação mais firme do Estado ao capital”.

Esses grupos, no entanto, pensam que os termos da primeira tese estavam “corretos até 1900, a época da abertura da expansão imperialista e, como tal, permanecem atualizados, mas incompletos quando a evolução do capitalismo deu ao Estado a função de retirar da iniciativa privada os momentos finais de tal evolução”.

E continuam dizendo que seremos os retardatários no mundo da “cultura” econômica, se não entendermos que onde essa tese deixa de se enquadrar na história, ela deixa de ser marxista, e se não exigirmos o complemento da análise de Marx para o estudo da economia de Estado, aprendendo isso a partir de textos da poderosa personalidade do economista Kaiser.[4] Um mau hábito! Um texto que visa estabelecer dadas relações entre coisas e fatos é confrontado com coisas e fatos e não com a assinatura no livro, que é baseada mais ou menos na personalidade poderosa ou impotente do autor!

Personalidades? Enfie-as no Kaiser! E se em 1950 o ídolo do empreendimento privado estiver corroído, sabemos bem que o Senhor Karl reduziu isso a fragmentos mínimos um bom século atrás: você vê que sabemos isso porque somos retardatários teimosos, preguiçosos na leitura dos livros mais recentes…

No marxismo, a noção da iniciativa privada não existe: olhe para baixo na bússola, não para o céu como a pessoa que ouve paradoxos (paradoxo: algo que o para o ouvido comum não é verdadeiro, embora o seja).

Dissemos em milhares de discursos de propaganda que o programa socialista é a abolição da propriedade privada dos meios de produção, o que é suportado pela Crítica do Programa de Gotha de Marx e por Lenin sobre Marx. Dissemos propriedade, e não economia privada. A economia pré-capitalista era privada, ou individual. Propriedade é um termo que não indica uma relação puramente econômica, mas também legal e põe em discussão não apenas as forças produtivas, mas também as relações de produção. Propriedade privada significa direito privado que é santificado pelos códigos legais burgueses: traz-nos de volta ao Estado e ao poder, feitos de força e violência nas mãos de uma classe. Nossa fórmula velha e válida não significa nada se já não contiver a noção que para superar a economia capitalista, a estrutura jurídica e estatal correspondente a ela também devem ser superadas.

Essas noções básicas devem ser suficientes para rejeitar o conteúdo insidioso da seguinte tese: o programa social é promulgado quando a propriedade individual se torna propriedade estatal, quando a fábrica é nacionalizada.

Sejamos bastante claros: os grupos com os quais estamos em disputa não afirmam que o capitalismo de Estado já é o socialismo, porém caem na alegação de que é uma terceira e nova forma entre o capitalismo privado e o socialismo. Eles, de fato, dizem que há dois períodos distintos: aquele no qual “o Estado tem mais a antiga função de segurança do que de se envolver na economia” e aquele no qual “dá o máximo de poder ao exercício da força especificamente para proteger a economia centralizada nele”. Dizemos que nestas duas fórmulas, que são mais ou menos fielmente reproduzidas, e ainda mais nos dois períodos históricos, que o capitalismo é o mesmo, a classe dominante é a mesma, e o Estado histórico é o mesmo. A economia é o campo social inteiro em que a produção e a distribuição ocorrem e inclui todos os homens que dela participam: o Estado é uma organização específica agindo no campo social, e o Estado no período capitalista sempre teve a função de policial e protetor dos interesses de uma classe e de um modo de produção historicamente correspondente a essa classe. O Estado concentrar a economia em si é uma fórmula incongruente. Para o marxismo, o Estado sempre está presente na economia — seu poder e sua violência legal são fatores econômicos do começo ao fim. Pode se explicar melhor deste modo: em certos casos, o Estado, com sua administração, assume a administração de assuntos industriais; e se assume a administração de todos eles, então terá centralizado a administração dos assuntos, mas não da economia. Especialmente na medida em que a distribuição ocorre com preços em dinheiro (não interessa que estes sejam fixados oficialmente), o Estado é uma empresa dentre outras empresas; pior porque considera como empresas cada um de seus empreendimentos nacionais, como com os Trabalhistas, Churchillianos, e os Stalinistas. Sair dessa situação não é uma questão de medidas administrativas, mas um problema de força revolucionária, de guerra de classes.

O problema é mais bem colocado em um boletim interessante publicado pelos camaradas do “Groupe français de la gauche communiste internationale[5] dos quais — com grande prazer — não conhecemos os nomes e as personalidades. São feitas perguntas sensatas sobre o problema que merece desenvolvimento mais aprofundado, e este é posto em contraste com a visão do conhecido grupo Chaulieu, que é influenciado pela teoria da “decadência” e da transição do capitalismo à barbárie que inspira neles, entretanto, o mesmo horror que os regimes “burocráticos”. Uma teoria em que não se sabe o que Kaiser[6] as bússolas estão indicando até tagarelarem sobre o marxismo. Estes são elementos no boletim interno de nosso movimento [7] sobre a decadência do capitalismo em que lidamos com a teoria falsa da curva descendente. Sem qualquer arrogância, cientificamente falando, é apenas tolice contar uma estória que lê: Ó, capitalismo, agarre-nos, engane-nos, reduza-nos a três gatos velhos e cansados que não merecem um chute, nos recuperaremos rapidamente — tudo isso só quer dizer que você está decadente. Apenas imagine que está decadente…

Quanto à barbárie, é o oposto da civilização e, portanto, da burocracia. Nossos sortudos ancestrais bárbaros não tinham aparatos organizacionais baseados (velho Engels!) em dois elementos — uma classe dominante definida e um território definido. Havia o clã, a tribo, mas ainda não havia a civitas. Civitas significa cidade, e também Estado. Civilização é o oposto de barbárie e significa organização estatal, portanto, necessariamente, burocracia. Mais Estado significa mais civilização que significa mais burocracia, enquanto as civilizações de classe seguem-se umas às outras. Isso é o que o marxismo diz. Não é o retorno à barbárie, mas o começo da supercivilização que nos está enganando em todos os lugares, que os monstros da superorganizações estatais contemporâneas dominam. Mas deixemos os membros do Socialisme ou barbarie com sua crise existencial. O boletim que citamos os refuta em um artigo com o título correto: Deux ans de bavardage: Dois anos de conversa fiada — Sem conversa fiada aqui, por favor!

Vamos à fórmula equilibrada com a qual os camaradas franceses formularam a questão — a definição da classe dominante dos países de capitalismo de Estado, a exatidão ou a insuficiência da definição: capitalismo herdeiro das revoluções liberais.

A conclusão apresentada por esse grupo está correta: parar de apresentar a burocracia como uma classe autônoma perfidamente aconchegada no seio do proletariado e, ao invés disso, a considerar como um enorme aparato ligado a uma determinada situação histórica na evolução mundial do capitalismo. Estamos, aqui, no caminho correto. A burocracia, que todas as sociedades de classe conheceram, não é uma classe, não é uma força produtiva, é uma das “formas” de produção apropriada a um ciclo determinado da dominação de classe. Em certas fases históricas, parece ser a protagonista no palco: nós também estávamos prestes a dizer na fase decadente; são de fato, fases pré-revolucionárias e aquelas de expansão máxima. Por que chamar a sociedade pronta para a parteira da revolução, a obstetra que dará luz à nova sociedade, decadente? A mulher grávida não é decadente, mas sim a estéril. Chaulieu vê a barriga inchada da sociedade capitalista e confunde a habilidade inadequada da obstetra frente ao útero inchado com a infertilidade imaginária da mulher grávida. Acusam a burocracia Kremlin de nos dar um socialismo natimorto devido a seu abuso de poder, enquanto a culpa é por não se ter assumido os fórceps da revolução para abrir a barriga da Europa-América, impulsionada pela próspera acumulação de capital, e ter feito um esforço infrutífero em um ventre infértil. E talvez apenas em um ventre infértil, invertendo a batalha por grão com a batalha por sementes. [8]

Vamos ao ponto puramente da economia marxista após esse breve esclarecimento. A frase “o capitalismo herdeiro das revoluções liberais”, que corretamente levantou a questão, contém a precisa tese histórica: o capitalismo tem um ciclo, um curso de classe único, da revolução burguesa à proletária, e ela não pode ser dividida em vários ciclos sem renunciar ao marxismo revolucionário. Mas, deve se dizer, como é feito um pouco mais adiante, o capitalismo apareceu das revoluções burguesas (não liberais), ou, melhor ainda, das revoluções “antifeudais”. De fato, o liberalismo se tornou o objetivo e a razão destas revoluções, sua ideia geral, apenas por meio da apologética burguesa. Marx rejeitou isso e para ele o objetivo dessas revoluções é a destruição dos obstáculos para a dominação da classe capitalista.

Apenas nesse sentido a formulação abreviada está correta. É bastante claro: o capital pode facilmente se livrar do liberalismo sem mudar sua natureza. E isso também está claro: a direção da degeneração; a degeneração da revolução na Rússia não substitui a revolução pelo comunismo por uma revolução por um tipo desenvolvido de capitalismo, mas sim por uma revolução capitalista pura. Isto ocorre paralelamente à dominação capitalista mundial que, por etapas consecutivas, elimina as velhas formas feudais e asiáticas em várias regiões. Enquanto a situação histórica nos séculos XVII, XVIII e XIX fez com que a revolução capitalista assumisse formas liberais, no século XX essa deve assumir formas totalitárias e burocráticas.

A diferença não se deve a variações qualitativas básicas de capitalismo, mas à enorme diversidade no desenvolvimento quantitativo, como com a intensidade em cada metrópole, e a disseminação pela superfície do planeta.

O fato de o capitalismo cada vez menos adotar a conversa fiada liberal para sua conservação, bem como para seu desenvolvimento e expansão, e cada vez mais usar de métodos policias e de sufocamento burocrático, quando a linha histórica é analisada com clareza, não deve provocar a menor hesitação com relação à certeza de que os mesmos métodos devem servir na revolução proletária. Ela se utilizará dessa violência, poder, Estado, e burocracia, desse despotismo, como o Manifesto o disse com um termo ainda mais nefasto 103 anos atrás. Saberá, então, como se livrar de todos eles.

O cirurgião não larga o bisturi manchado de sangue antes que a nova vida tenha surgido e dado seu primeiro suspiro, o hino à vida.

Ontem

A forma básica do capitalismo não sumiria com o desaparecimento de indivíduos particulares que, como donos de fábricas, organizam a produção? Esta é uma objeção feita no campo econômico que atrai a atenção de muitos.

“O Capitalista” é nomeado cem vezes por Marx. Além disso, a palavra “Capital” vem da palavra caput, significando cabeça, e assim, tradicionalmente capital é riqueza associada, registrada, a qualquer titular individual. No entanto, verá que nossa tese (defendida por nós há tempos, se mantendo verdadeira, nada traz de novo e procura apenas explicar) que a análise marxista do Capitalismo não considera como elemento necessário a pessoa do dono da fábrica.

As citações de Marx seriam inumeráveis: deixe-nos concluir com apenas uma.

Consideremos o suposto capitalismo “clássico” das empresas “livres”. Marx sempre colocou estes conceitos entre aspas, que caracterizam a escola burguesa, a qual ele não só lutou contra, mas destruiu com seus conceitos econômicos — este é o ponto que é sempre esquecido.

Naturalmente se presume que o Sr. X, o primeiro capitalista a surgir, possuía uma quantia de dinheiro em mãos. Ótimo. Seções inteiras da obra de Marx respondem com a questão: Como? As respostas então variam: roubo, assalto, usura, comércio ilícito ou, como já vimos mais do que algumas vezes, cartas reais ou a lei da terra ou do Estado.

Então X, ao invés de guardar as suas moedas de ouro em um saco, para que pudesse então passar os dedos por elas toda noite, age como um cidadão embutido de ideais liberais e sociais. Ele nobremente assume o risco e circula o seu capital.

Dessa forma, primeiro elemento; dinheiro acumulado

Segundo elemento; se adquire a matéria prima, o clássico fardo de algodão cru de tantos capitulos e paragrafos.

Terceiro elemento; se adquire o estabelecimento e os teares para fiar e tecer.

Quarto elemento; a organização técnica e administração. O capitalista clássico vai atrás disto por si só. Ele estuda, faz viagens e jornadas, inventa novos sistemas para organizar os teares e ao economizar seus custos produzindo tecido em grande quantidade; vestirá de forma barata os garotos de rua de ontem e até mesmo os negros da África central que eram acostumados a não usar roupas.

Quinto Elemento: Os trabalhadores nos teares não terão de trazer nem mesmo uma onça de algodão cru ou um único carretel; como acontecia nos tempos semi-barbáricos da produção individual. Mas ao mesmo tempo encontrarão problemas se removerem até mesmo um único fio de algodão para consertar a sua calça. São pagos apenas com o equivalente justo pelo tempo de trabalho. [9]

É por meio da combinação de todos esses elementos que se chega ao motivo e à razão de todo o processo: a massa de tecidos ou fios. O fato essencial é de que apenas o capitalista pode levar este resultado ao mercado e o resultado financeiro é dele e apenas dele.

Sempre a mesma velha história. Sim, você já conhece a pequena soma; As Perdas: o custo do algodão cru, algo para compensar os reparos da fábrica ou do maquinário, os salários dos trabalhadores. Os Ganhos: o preço do produto vendido. Este último é maior do que a soma dos custos e a diferença entre os dois que é o que constitui a margem de lucros da empresa.

Pouco importa que o capitalista faz o que quiser com o seu dinheiro, ele já poderia fazer isso sem ter produzido nada. O fato importante é que depois de reestocar tudo ao nível de seu investimento original, ele ainda possui dinheiro em mãos. Ele certamente poderia desfrutar desse dinheiro, porém não lhe é permitido socialmente: algo o força a reinvesti-lo, a convertê-lo novamente em capital.

Marx afirma que o ciclo de vida do capital consiste apenas em seu movimento enquanto valor perpetuamente posto em movimento procurando se multiplicar. Nisto, a vontade da pessoa do capitalista não é considerada, e muito menos seria ele capaz de impedi-lo. O determinismo econômico não só obriga o trabalhador a vender seu trabalho mas semelhantemente obriga o capitalista a investir e acumular. Nossa crítica ao liberalismo não consiste em afirmar que uma classe é livre e outra é submetida à escravidão. Existe uma classe explorada e uma exploradora, mas ambas estão presas às leis históricas do modo capitalista de produção.

Este processo, portanto, não é um processo limitado às fábricas e empresas, mas sim possui um caráter social, e portanto só pode ser entendido desta forma. Em Marx já se encontra presente a possibilidade da separação dos elementos da reprodução capitalista e da pessoa do empreendedor capitalista, este sendo substituído por uma participação compartilhada na margem de lucros do empreendimento produtivo.

Em primeiro lugar: o dinheiro pode vir por meio de uma financiadora, do banco, que recebem juros periódicos.

Segundo: nesse caso, os materiais adquiridos com esse dinheiro não são propriedade de fato do empreendedor, mas sim do financiador.

Terceiro: Na Inglaterra o dono de um imóvel, casa ou fábrica pode não ser o dono da terra na qual ela foi construída: portanto, casas e fábricas podem ser alugadas. Nada proíbe que o mesmo seja feito também com as ferramentas e máquinas.

Quarto: O empreendedor pode, se não possuir capacidade administrativa ou técnica, contratar engenheiros e contadores.

Quinto: O pagamento dos salários dos trabalhadores evidentemente também pode ser realizado por meio de empréstimos de financiadores.

A função do empreendedor é reduzida a ter notado que existe uma demanda de mercado por certa massa de produtos que possui um preço de venda maior do que o custo total de elementos que a precedem. Aqui a classe capitalista fica restrita à classe empreendedora, uma força social, política, e a principal base do Estado Burguês. Mas a camada de empreendedores não necessariamente coincide com a de proprietários de terra, casas, fábricas, lojas, máquinas, dinheiro, etc.

Há dois pontos básicos necessários para reconhecermos o capitalismo, o primeiro é que o direito do empreendimento produtivo, da venda e obtenção de lucro (preços controlados ou requisição de mercadorias não prejudicam tais direitos) esteja intacto e desimpedido. O que assegura este direito central na sociedade contemporânea é desde o primeiro momento um monopólio de uma classe, uma estrutura de poder, em defesa da qual o Estado, a magistratura e a polícia atacam aqueles que transgridem a norma. Esta é a condição para a existência do empreendimento produtivo. O outro ponto é que as classes sociais não possuem mais “fronteiras fechadas”. Não existem mais a partir de uma perspectiva histórica, castas ou ordens; o pertencimento à aristocracia era algo que sobrevivia o indivíduo, com o título sendo herdado por gerações. A propriedade de imóveis ou de grandes finanças dura em média pelo menos o de uma vida. O “tempo médio de participação como membro da classe dominante” tende a diminuir. É por esta razão que estamos preocupados com a forma extremamente desenvolvida do capital e não com o capitalista. Este diretor não necessita de pessoas fixas. Ele encontra e recruta elas onde e quando quiser e as substitui entre turnos cada vez mais perturbadores.

Hoje

Aqui não temos como demonstrar que o Capitalismo “parasitário” de Lenin não deve ser entendido no sentido que o poder se encontra mais nas mãos dos capitalistas financeiros do que dos capitalistas industriais. O capitalismo não poderia se espalhar e expandir sem amplificar também suas complicações e o processo progressivo de sua separação em diversos elementos que, em busca do ganho especulativo entram em conflito: finança, tecnologia, equipamento, administração. A tendência é que o controle social e a maior margem de ganhos escape das mãos dos elementos positivos e ativos e se concentrem nas mãos de especuladores e do banditismo comercial.

Devemos então voar de Marx até… Don Sturzo.

Este último, com sua prudência habitual cuidou do escândalo do INA [10]. O que ele disse é interessante: “Não posso dizer o que aconteceu durante o fascismo porque estava na América, mas onde essas coisas são a ordem do dia muitas outras podem vir à luz”. Podemos ter certeza: o parasitismo capitalista na Itália contemporânea ganha daquela de Mussolini e ao mesmo tempo ambas são brincadeira de criança comparadas às manobras dos negócios Americanos.
O INA possuía grandes finanças porque coletava a contribuição de segurança social de todos os trabalhadores, assim como outras instituições estatais semelhantes com iniciais bem conhecidas. O INA demorava para pagar, então seus cofres estavam cheios de dinheiro disponível. Dessa forma ele possuía o direito (mesmo não possuindo cabeça, corpo ou alma; é por boa razão que vivemos na civilização do habeus corpus) de não deixar tal riqueza parada, dessa forma ele se utiliza dela e a investe. Que boa sorte do empreendedor moderno! Ele é o capitalista sem capital, assim como dialeticamente o capital moderno é capital sem o chefe, acéfalo.

O problema da negociata, diz o sabido padre Siciliano (aqueles no seu pombal esperam por uma exagerada oração em seu funeral) foi a formação de muitas companhias de fachada sob o INA.

Mas que Kaiser é uma companhia de fachada? Alguns dos versados em negócios que possuem escritórios luxuosos e vêm adentrando o terreno político e econômico não possuem centavos, ações ou imóveis em seus nomes (eles nem alugam casas, mas vivem em grandes hotéis, eles conhecem Vanoni [11] profundamente, mas Vanoni não os conhece[12]), planejam um negócio e registram uma companhia com este plano como a sua única propriedade. O INA ou algum outro órgão semelhante lhe dará o dinheiro e, se for necessária alguma “lei especial”, por exemplo, para se plantar groselha em velhas bases do exército, o problema é levado rapidamente à atenção dos líderes e resolvido com facilidade, especialmente por meio de um discurso duro feito por um ministro da oposição sobre a ineptitude do governo.

Na realidade, no momento em que o empresário comum vai ao banco buscar um empréstimo para utilizar em seu plano de negócios o banco responde: “Ótimo, aqui está, onde está sua garantia? Entregue sua propriedade e seus títulos…” Mas uma companhia estatal não requer dessas minúcias: o bem nacional é o bastante para que entreguem o dinheiro. O resto do conto já é conhecido, se o velho empresário com seu plano, ao invés de plantar groselha, fizer groselha, ele estará acabado, não ganhará seu dinheiro de volta e se retirará da classe patronal humilhado.

A nossa companhia de fachada com seus empregados brilhantes não corre esse risco: se plantarem groselha, e elas forem vendidas por um bom preço para os mercados, o dinheiro é ganho. Se não produzirem groselha ou se ninguém quiser groselha, não importa — as indenizações e a participação nos lucros serão todas cobradas e o INA pagará pela equivocada plantação de groselha.

Nós explicamos o que o Capitalismo de Estado (ou a economia centralizada no Estado) significa por meio deste exemplo pequeno e banal. É necessário dizer que as perdas do INA são compartilhados por todos os pobres coitados que contribuem com seu cofre com mais uma parcela de seus salários.

Capitalismo de Estado é a finança concentrada no estado à disposição de manipuladores de mercados e da iniciativa empresarial. Nunca a livre iniciativa foi tão livre quando o lucro se mantém mas o risco é removido e transferido à comunidade.

Somente o Estado pode imprimir tanto dinheiro quanto quiser e punir o falsário. A expropriação progressiva de pequenos proprietários e a concentração capitalista são baseadas nesse principio inicial da força. Temos afirmado repetidamente, e com razão, que nenhuma economia em que as empresas declaram suas contas e em que a troca é realizada por meio do dinheiro, pode evitar estas leis.

O poder do Estado está, portanto, baseado nos interesses convergentes dos especuladores que se beneficiam dos planos especulativos das empresas e das raízes profundas de sua rede de conexões internacionais.

Como poderiam esses Estados continuar a emprestar capital para as gangues que nunca pagam as suas dívidas ao Estado, senão por forçar as classes exploradas a arcar com os custos? Aí está a prova de que esses estados “capitalizadores” possuem uma dívida crônica com a classe burguesa ou, se você busca por uma prova fresca, esta se encontra no fato que estão obrigados a pedir empréstimos, recebendo o seu dinheiro de volta e pagando juros sobre eles.

A administração socialista de uma “economia centralizada” não ofereceria renda externa a qualquer “plano” pelo motivo de que não pagaria juros. Além disso, não faria uso do dinheiro.

O capital apenas se concentra no Estado pela conveniência do mais-valor e da estratégia de lucro. Ele se mantém “disponível para todos” ou disponível para aqueles que compõem a classe empreendedora — não mais simples produtores empreendedores, mas abertamente empreendedores de negócios — não mais se produz mercadorias, mas como já disse Marx, se produz mais-valor [13].

O capitalista como pessoa não mais tem um papel nisso — o capital sobrevive sem ele, mas com a sua mesma função multiplicada por cem. O sujeito humano se torna inútil. Uma classe sem membros para compô-la? O Estado não se encontra mais a serviço de um grupo social, mas sim de uma força impalpável, uma obra do Espirito Santo ou do Demônio? Aqui está a Ironia de nosso velho Don Carlo [14]. Oferecemos a seguinte citação.

“Ao transformar o dinheiro em mercadorias, que servem de matérias para criação de novos produtos ou como fatores do processo de trabalho, ao incorporar força viva de trabalho à sua objetividade morta, o capitalista transforma o valor — o trabalho passado, objetivado, morto — em capital, em valor que se autovaloriza, um monstro vivo que se põe a “trabalhar” como se seu corpo estivesse possuído pelo demônio” [15]

O Capital deve ser agarrado pelos chifres.

[1] O título é uma referência alterada a esta passagem n’O Capital, Livro I (Boitempo, São Paulo, 2013, p. 271): “Ao transformar o dinheiro em mercadorias, que servem de matérias para a criação de novos produtos ou como fatores do processo de trabalho, ao incorporar força viva de trabalho à sua objetividade morta, o capitalista transforma o valor — o trabalho passado, objetivado, morto — em capital, em valor que se autovaloriza, um monstro vivo que se põe a “trabalhar” como se seu corpo estivesse possuído de amor”, que é, por sua vez, uma referência ao Fausto de Goethe, como é observado em nota de rodapé na mesma página da edição d’O Capital. (Nota do tradutor)

[2] Cf. Bussole impazzite (bússolas atingidas pela loucura).

[3] Propieta’ e capitale (Iskra, Milan, 1980), p.130.

[4] Henry Kaiser propôs um capitalismo “social” com os trabalhadores compartilhando os lucros.

[5] Boletim lançado em setembro de 1951 pelo grupo que depois se tornou a seção francesa do International Communist Party (ICP). Chaulieu = Castoriadis, um dos fundadores do grupo Socialisme ou barbarie.

[6] O autor faz aqui um trocadilho com Henry Kaiser. (Nota do tradutor)

[7]Il rovesciamento della prassi” [A derrubada da prática], agora no Partito e classe (Milan, 1972), p. 120–1, 130. “Esta teoria (da curva descendente) vem do reformismo gradualista: não há quedas, tremores ou saltos”. (Ponto 4)

[8] Referência à tentativa de Stalin e Kruschev de aumentar a produção de milho.

[9] O uso por parte do autor do termo “tempo de trabalho” é possivelmente um lapso. É básico para Marx que ao contrário das aparência de que os trabalhadores são pagos de acordo com o trabalho realizado ou com o tempo de trabalho, a realidade é que vendem e recebem pagamento pela sua força de trabalho — sua capacidade de trabalhar. O valor da força de trabalho é o custo de sua reprodução: “Assim, o tempo de trabalho necessário à produção da força de trabalho corresponde ao tempo de trabalho necessário à produção desses meios de subsistência, ou, dito de outro modo, o valor da força de trabalho é o valor dos meios de subsistência necessários à manutenção de seu possuidor.” (O Capital, Livro I, p. 317 ) Enquanto a forma salário nos dá a impressão de que todo o trabalho realizado é compensado, para Marx apenas parte deste trabalho realizado reproduz o valor de sua força de trabalho e portando é “pago” — o restante é excedente à este valor e é portanto “não pago”. (Ver O Capital, Livro I, Capítulos 6 & 7). (Nota do tradutor)

[10] Don Sturzo: Ex padre, líder da Direita dos Democratas Cristãos, se opunha a corrupção do Partido e do Estado. O INA (Istituto Nazionale delle Assicurazioni) foi estruturado em 1912 como monopólio do Estado, a oposição liberal levou à sua estruturação como um órgão Estatal com “maior autonomia e uma organização interna próxima de estruturas privadas, em contraste com outras organizações do Estado Candeloro Storia dell’ Italia moderna, Milan, 1974, Vol. VII, p. 307) É por isto que podia operar da forma descrita no texto.

[11] Vanoni era na Época Ministro da Economia. (Nota do tradutor)

[12] Cf. Nota 10 acima.

[13] O autor parece subscrever nessa passagem à tese da “produção simples de mercadorias”, interpretação avançada por Engels, no prefácio e no posfácio a’O Capital, Livro III, e que não foi contestada até os anos 1960. Para uma crítica dessa interpretação, ver: Helmut Reichelt, Sobre a estrutura lógica do conceito de capital em Karl Marx, Unicamp, São Paulo, 2013; Christopher J. Arthur, A Nova Dialética e ‘O Capital’ de Marx, Edipro, São Paulo, 2016. (Nota do tradutor)

[14] Se referindo a Karl Marx e possivelmente também à grande ópera “Don Carlo” de Giuseppi Verdi, compositor nacionalista Italiano. (Nota do tradutor)

[15] Citação de o Capital, Livro I. que da também nome ao artigo, esta presente na tradução de Roy, Volume 1, Página 195 e página 219 na tradução de J.P. Lefebvre e seu time, traduzido a partir da quarta edição Alemã.

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