Avante, Bárbaros!

Sul Filo del Tempo [1]

Proelium Finale
18 min readDec 11, 2021
Bob May, 2019

Há duas concepções da história grandes e opostas. A primeira, grande porque conseguiu agarrar-se à nossa consciência durante séculos: o fator determinante da história está na glória da dominação, na vontade de poder, na iniciativa, na paixão e no impulso dos heróis, dos líderes, dos grupos, que se lançam à batalha para poder levar aos seus lábios gananciosos o cálice que saciará essa sede ardente de comando; e a partir destas colisões e guerras são traçados os caminhos da humanidade.

A segunda concepção é nossa, de nós marxistas. Vamos demonstrar isto usando uma das formulações mais claras da Engels:

Segundo a concepção materialista, o fator que, em última análise, determina a história é este: a produção e a reprodução da vida imediata. (Engels, 2019, Prefácio à primeira edição)

Foi assim que Engels introduziu, em 1884, seu esplêndido texto A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Da primeira à última frase desta opereta, assim como da primeira à última frase da doutrina revolucionária do proletariado formulada por Marx, a seguinte tese corre sem interrupção: a família, a propriedade e o poder não são instituições que nascem com a espécie humana e sem as quais ela não pode sobreviver. Os homens já eram há muito tempo uma sociedade quando estas três instituições surgiram. Ao demonstrarmos isto cientificamente, mostramos também que um dia todas as três instituições cairão. Em nosso programa, não escrevemos a modificação, a reforma, a transformação, mas a destruição destas três infelizes bases da civilização: família, propriedade e Estado.

Trataremos do problema da família e do sexo no devido tempo. Também aqui, a explicação individualista, a aspiração ao prazer do ego, com todas as suas construções anormais e corrupções, cai para nós e vem à tona uma explicação não voluntarista, mas determinista e social.

Basta citar as palavras que explicam o que é “a produção e reprodução do essencial imediato da vida”. Aqui estão:

Por um lado, a geração dos meios de subsistência, dos objetos destinados a alimentação, vestuário, habitação e das ferramentas requeridas para isso; por outro, a geração dos próprios seres humanos, a procriação do gênero. As instituições sociais em que os seres humanos de determinada época histórica e de determinado país vivem são condicionadas por duas espécies de produção: pelo estágio de desenvolvimento do trabalho, de um lado, e pelo da família, de outro. (Engels, 2019, Prefácio à primeira edição)

Como Pio XII, ao contrário do burguês existencialista e caçador de novos frêmitos, sempre à procura do próximo estímulo e da próxima carniça, vemos no amor um meio da produção de homens, porém, como não somos guiados por pressupostos místicos ou éticos, entendemos que assim como a criança brinca para um dia poder correr atrás de feras na floresta… ou atrás dos ônibus da selva de concreto, como o motor do carro tem de queimar antes de produzir energia útil na estrada, a função sexual também possuí um campo de funções mais amplo do que o encontro útil de células germinativas.

As instituições relacionadas à reprodução do homem precedem as relacionadas à produção de bens manufaturados, mas sempre:

As instituições sociais em que os seres humanos de determinada época histórica e de determinado país vivem são condicionadas por duas espécies de produção: pelo estágio de desenvolvimento do trabalho, de um lado, e pelo da família, de outro. (Engels, 2019, Prefácio à primeira edição)

No estado selvagem e de barbárie da humanidade, a espécie vive dos produtos da natureza sem muita contribuição do trabalho; nesta fase, prevalecem como elementos determinantes da vida os sistemas de parentesco e de família; na fase posterior, a da civilização, à medida que o número de homens e a capacidade de produção de materiais aumenta, são os sistemas de produção que são de importância predominante. Formas familiares e formas sociais são transitórias e desaparecem após um longo período de resistência devido à sua poderosa inércia. Morgan, em cuja pesquisa Engels se baseou a partir das notas de Marx sobre o seu trabalho (A Sociedade Antiga), encontrou nesses sistemas de parentesco pertencentes a todos os povos vários vestígios de tipos de famílias desaparecidas; e embora ele não partisse de um sistema materialista assertivo, ele observou que embora a realidade do fato sexual e reprodutivo (família) mudasse, as denominações de parentesco antigas sobrevivem com as suas consequências sociais e também legais: tais sistemas, disse, são passivos. E é neste ponto que Marx observa na margem:

O mesmo se aplica aos sistemas políticos, jurídicos, religiosos, filosóficos em geral.

É precisamente desde quando conhecemos a transitoriedade e passividade de todos estes sistemas que podemos ir além da filosofia burguesa e reacionária do Cândido de Voltaire. Como nasce e morre venal, a burguesia só poderia nascer e morrer cética. Para ela, o diálogo filisteu é definitivo:

“Acreditais”, disse Cândido, “que os homens tenham sempre se massacrado naturalmente, como fazem hoje? Que tenham sido sempre mentirosos, enganadores, pérfidos, ingratos, bandidos, fracos, volúveis, covardes, enfadonhos, gulosos, beberrões, avaros, ambiciosos, sanguinários, caluniadores, debochados, fanáticos, hipócritas e tolos?” “Acreditais”, disse Martinho, “que os gaviões sempre comeram pombas quando as encontraram?” “Acredito, sem dúvida”, disse Cândido. “Pois bem”, disse Martinho, “os gaviões sempre tiveram a mesma índole, por que quereis que os homens tenham mudado a deles?” (Voltaire, 2012, capítulo 11)

Cândido abaixa os braços, balbuciando que a diferença está no livre arbítrio… Não acreditamos no livre arbítrio como Cândido, mas sabemos, como Engels sabia, que a civilização “pôs em movimento e paixões e instintos mais sórdidos do homem”, desconhecidos da era bárbara: “civilização”, cuja forma mais elevada é exatamente aquela que o senhor anunciava, Sr. Arrouet de Voltaire.

E é precisamente porque somos partidários desta segunda concepção da história, que elimina o gênio do mal e o gênio do bem, bem como a sanguinária “natureza” humana, que pudemos dizer em 1914 que era idiota a busca pelo agressor entre os déspotas coroados de Petrogrado, Berlim ou Viena; e em 1939 que a identificação cínica e unânime do criminoso de guerra no seio dos chefes de Estado de Berlim, Roma e Tóquio era igualmente idiota.

E, segundo a mesma linha coerente, apenas uma pequena minoria ainda é capaz de entender o vazio paralelo das acusações que, com ostensivas homenagens à mesma doutrina retrógada da história, Acheson e Vyshinsky[2] trocam nas reuniões da ONU. Ambos traçam a causa da eclosão de uma guerra nova e mais terrível (entre aqueles que ontem eram irmãos quando se tratou de punir os agressores e julgar os criminosos) ao desejo do grupo governante oposto de ter mais poder, mais território, mais controle sobre as massas humanas. Os dois declaram que um cataclismo histórico universal pode nascer desta sede sádica por poder numa hierarquia restrita de líderes e não tem outra causa: ambos dizem, de fato, que a paz é possível e desejada por eles apenas se o grupo rival puder ser desintoxicado!

Agora, se entre os poucos grupos marxistas revolucionários nossos, longe dos bandos e rebanhos de “vice-grandes” contratados por um ou outro, é evidente que todo o marxismo cai quando a causa da guerra, como da opressão, é atribuída à má vontade premeditada dos homens, uma vez que isto equivale a saltar por cima da barricada e aplicar a outra e oposta visão da história — e se, ao invés disso, é claro para nós que o momento determinante” deve ser encontrado na esfera económica e na luta das classes sociais — se tudo isso for óbvio, como alguns indivíduos, nesses grupos que são tanto anti-Truman como anti-Stalin, não veem que estão cometendo o mesmo erro, quando, para “explicar a Rússia de hoje”, buscam uma terceira classe numa hierarquia estatal que, tomando o poder e degustando sua volúpia mais a fundo, pavimentou nosso caminho (aquele do livreto de Engels) do estado selvagem à sociedade comunista, com um obstáculo tão grande quanto esperava?

Mas você tinha toda a história num livrinho? Um momento! Ninguém que, como nós, seja um modesto popularizador de velhos temas de propaganda, que precisamente porque nunca foi subornado, tem de viver do trabalho diário, e nem sequer tem uma enciclopédia (talvez por ódio a Voltaire), pode contestar a possibilidade de surgir um adversário bem treinado e bem informado que conseguiu elaborar um imenso material científico extraído de todo o horizonte. Apenas Morgan, sobre quem Engels parou para pensar, lutou durante mais de quarenta anos para estudar o problema e obteve pouco apoio do governo americano, então, como não estava no nível de uma santidade (ainda há estudiosos ingênuos?), foi jogado no esquecimento. Portanto, estamos sempre prontos para reconhecer a nossa ignorância como diletantes.

Fazemos somente uma reclamação. De todos os lados se diz falar em nome de Marx; não se o considera, portanto, “pouco atualizado” — mesmo que quase oitenta anos nos separem do seu trabalho. Beria, que substituiu Stalin na comemoração de Outubro, encerrou com um hino aos grandes ensinamentos de Marx, Engels, Lenin e Stalin. Os documentos de Acheson difundiram para a propaganda americana o texto de Sir David Kelly, ex-embaixador dos trabalhadores em Moscou, cujo título era: “Karl Marx vencido pela tirania de Stalin”.

Portanto, pararemos para aprender com um adversário se ele tiver a coragem de colocar esta epígrafe simples e curta: como Marx era idiota!

Pois só então este adversário teria o direito de nos explicar que, em virtude de outras contribuições sólidas de pesquisa positiva, agora a visão da história da qual somos catecúmenos não é mais verdadeira.

Todos os outros estão preocupados demais em se passar por marxistas, para não parecerem tão burros quanto são sacanas.

Ontem

Continuemos com algumas olhadelas no artigo engelsiano para mostrar que tudo “colapsa” se dermos crédito às mentiras dos súditos vigorosos e audaciosos que estão loucos para reinar e dos quadros burocráticos que colocaram confiantemente suas rond de cuir [do francês: almofada de couro, com sentido figurado de burocrata], sua almofada circular, na cratera dos grandes vulcões da história, extinguindo o fogo eruptivo com o poder de seus flatus a tergo [do latim: vento de trás, com sentido figurado de “peido”].

Deixaremos de lado agora o problema do sexo e a explicação das formas primitivas de família. Estamos apenas interessados em citar uma passagem, de natureza fundamental porque se aplica a todos os problemas relativos à sociedade futura, já que nossa escola derrubou a escola utópica. A monogamia não é um estado “natural”, pois não existiu em dado momento e se demonstrou que os diversos povos passaram por etapas não só de poligamia e poliandria, mas também de casamento grupal. No seio da tribo primitiva, existem diversas gens; os membros de uma mesma gens não podem se casar; os homens de uma tribo, ou um grupo deles, se enquadram nos “poli-maridos” de um grupo de “poli-esposas” das outras gens. Cunhamos estes dois termos para popularizar o conceito de casamento em grupo, que precede a monogamia, mas isso é uma coisa bem diferente da promiscuidade sexual indiferenciada ou das fábulas sobre o amor livre: rir é tão idiota quanto se escandalizar. Em todo caso, a forma familiar moderna é recente e contingente. E assim, por sua vez, ela dará lugar a novas formas. Quais? Aqui está o grito do coração dos pequenos burgueses. Aqui conclui Engels:

Portanto o que podemos supor hoje sobre a ordem das relações sexuais depois que a produção capitalista for varrida do mapa possui um caráter preponderantemente negativo, limitando-se ao que será subtraído. Mas o que será acrescentado? Isso se decidirá quando uma nova geração tiver crescido: uma geração de homens que nunca na vida estiveram na situação de comprar a entrega de uma mulher por dinheiro ou outros recursos sociais de poder, e uma geração de mulheres que nunca estiveram na situação de entregar-se a um homem por considerações outras que não o verdadeiro amor, ou de negar a entrega ao amado por medo das consequências econômicas. Quando essas pessoas existirem, mandarão ao diabo as ideias que hoje se tem a respeito do que elas deveriam fazer; elas mesmas constituirão sua práxis e, em consonância com ela, a opinião pública que julgará a práxis de cada indivíduo. Ponto final. (Engels, 2019, Capitulo II, 4)

Deixem Vyshinsky e Acheson, companheiros dignos, repreenderem-se mutuamente pelos ataques à santidade da família, à santidade da pessoa humana e, em geral, à santidade da atual civilização comum. Não são os violadores, mas os defensores das instituições da personalidade, da família e da civilização de hoje, que devem, ser colocados contra a parede.

Saltamos da barbárie para a civilização. A chave para as transições reside nas sucessivas formas de divisão do trabalho. Até à primeira fase da barbárie, existe a única divisão natural do trabalho, a que existe entre os sexos. O resultado é a sociedade das gens, uma comunidade limitada de homens. Engels compõe um verdadeiro hino para este sistema bárbaro. Esta simples organização resolve todos os problemas internos sem conflitos. No exterior, sim, é a guerra que resolve os problemas: não estamos numa Arcádia… ou num mundo no qual as Nações Unidas funcionam como Nenni[3] gostaria que funcionassem: de acordo com os princípios de sua carta fundadora (a peça de Acheson!). Vou da voz de Nenni, passemos para a de Engels:

[…] a guerra […] pode levar à aniquilação da tribo, mas nunca à sua subjugação. Este é o aspecto grandioso da constituição gentílica, mas também sua limitação {refletir}: nela não há lugar para dominação e escravização. (Engels, 2019, capítulo IX)

A divisão social do trabalho em virtude do progresso técnico começa a se sobrepor à divisão natural do trabalho entre os sexos. A primeira grande divisão social do trabalho: os criadores de gado domésticos se separam dos simples caçadores e pescadores: os primeiros já produzem mais do que consomem, aprendendo novos consumos (leite, couro, fios, tecidos…). Nascia, então, a propriedade privada: eu, um pobre animal humano, só conseguiria filosofar: Deus a criou. E hoje eu só posso filosofar: o Diabo a toma.

Aprender que se pode produzir mais significa aprender a obter força de trabalho: o grupo vencedor não extermina mais o derrotado. Ele começou a se civilizar: ele transforma o prisioneiro num escravo. A primeira divisão em classes nasceu: escravos e senhores.

A segunda grande divisão social do trabalho surgiu com a diferenciação entre os ofícios e a agricultura. A produção escravagista é complementada por aquele de servos. Nasce uma nova divisão em classes da sociedade entre ricos e pobres. “Chegamos agora ao limiar da civilização”; e chegamos também ao limiar da burocracia: conte pra nós, Friedrich, e que sua sombra nos perdoe as elipses:

A maior densidade populacional força uma coesão mais estreita, tanto interna quanto externamente. A confederação de tribos aparentadas se torna uma necessidade em toda parte e, logo depois, também a sua fusão, e, com esta, a fusão dos territórios tribais num único território global do povo. O comandante de tropas do povo — rex, basiléus, thiudans — torna-se um funcionário permanente e imprescindível. Nasce a assembleia do povo onde ainda não havia uma. […] A guerra, que antes era feita apenas para vingar-se de ataques ou para ampliar o território que se tornara insuficiente, passa a ser feita simplesmente em razão da rapina, torna-se ramo fixo de subsistência. Não é sem motivo que os muros ameaçadores vigiam o entorno das novas cidades fortificadas: os fossos representam o túmulo que engole a constituição gentílica e as torres já adentram a civilização. […] As guerras de rapina aumentam o poder tanto do supremo comandante de tropas quanto dos subcomandantes; principalmente desde a introdução do direito paterno, o costume de eleger sucessores oriundos das mesmas famílias assume gradativamente a forma de hereditariedade, primeiro tolerada, depois reivindicada e, por fim, usurpada; o fundamento da realeza hereditária e da nobreza hereditária foi lançado. (Engels, 2019, capítulo IX)

A civilização está florescendo agora e, com uma terceira e essencial divisão social do trabalho, a Idade Média nos traz os comerciantes, uma classe que não está preocupada com a produção, mas sim com a troca de produtos. Chegamos agora à fase monetária: esta etapa incentiva a formação da maior riqueza e das maiores posses já vistas pelo homem; ela acentua a divisão em classes; aqui o Estado surge (demonstrando que, como a família e a propriedade, ele não existiu por toda a eternidade). Engels nos mostra como este nascimento ocorre em Atenas, em Roma e entre os alemães. E nisto nós encontramos as passagens fundamentais citadas por Lenin em seu O Estado e a revolução.

O primeiro ponto é um no qual batemos muitas vezes: a unidade do território. Segundo ponto: a instituição de uma força pública.

Pode ser bem insignificante, quase imperceptível em sociedades com antagonismos de classes ainda não desenvolvidos e em regiões remotas, como em certas épocas e certos locais dos Estados Unidos da América. Mas ele se reforça à medida que se aguçam os antagonismos de classe dentro do Estado e à medida que os Estados limítrofes se tornam maiores e mais populosos — basta considerar nossa Europa atual, na qual a luta de classes e a concorrência conquistadora elevaram o poder público a um nível que ameaça engolir toda a sociedade e até mesmo o Estado. (Engels, 2019, capítulo IX)

Hoje, em 1950, está claro que com a marinha moderna, a força aérea e o rádio, todos os grandes Estados são “limítrofes”. Mas só os cegos não conseguem enxergar que a polícia e a burocracia deveriam, segundo nossa visão marxista tradicional caminhar rumo a uma inflação inexorável.

Engels fala então dos impostos. E ele diz:

De posse do poder público e do direito de cobrar impostos, encontram-se, então, os funcionários como órgãos da sociedade acima da sociedade. O respeito livre e voluntário aos órgãos da constituição gentílica não lhes basta, mesmo que pudessem tê-lo; detentores de um poder estranhado da sociedade, eles precisam impor respeito por meio de uma lei de exceção, por força da qual gozam de santidade e imunidade especiais. O mais degenerado servidor policial do Estado civilizado tem mais “autoridade” do que todos os órgãos da sociedade gentílica juntos; mas o príncipe mais poderoso, o maior estadista ou general da civilização pode invejar o líder gentílico pela reverência não forçada e inquestionável que lhe é prestada. Este está no meio da sociedade; aquele é obrigado a representar algo fora dela e acima dela. (Engels, 2019, capítulo IX)

Nós sorrimos como Vyshinsky (mas não tão amarelo). Eles, o Chaulieu e os agregados, descobriram em meados do século a onipotência da burocracia stalinista!

Depois de ter estabelecido sobre bases de granito a doutrina da morte do Estado, deduzida da história de seu nascimento, Engels conclui sobre a civilização:

Pelo que foi exposto, a civilização é, portanto, o estágio de desenvolvimento da sociedade em que a divisão do trabalho, a troca entre indivíduos dela decorrente e a produção de mercadorias que abrange as duas chegam a seu pleno desenvolvimento e revolucionam toda a sociedade mais antiga. […] A síntese da sociedade civilizada é o Estado, que, em todos os períodos tomados como exemplo, é sem exceção o Estado da classe dominante e, em todos os casos, é essencialmente um mecanismo de repressão da classe oprimida e espoliada. (Engels, 2019, capítulo IX)

Esta civilização cujo surgimento nós mostramos deve necessariamente ver seu apocalipse perante nós. O socialismo e o comunismo estão além e depois da civilização, assim como a civilização estava além e depois da barbárie. Eles não são uma nova forma de civilização.

Dado que a base da civilização é a espoliação de uma classe por outra, todo o seu desenvolvimento transcorre em permanente contradição. (Engels, 2019, capítulo IX)

Se, portanto, figuras como Truman, Stalin e Churchill podem se colocar como os porta-bandeiras da civilização e se Chaulieu e outros malucos querem encontrar uma posição como figuras da antibarbárie, nós queremos ficar de fora desta brincadeira, com Marx, Engels e Lenin.

Talvez seja perturbador que o comunismo ainda não tenha conseguido emergir da ruína da civilização, mas é ridículo usar a ameaça das alternativas bárbaras para querer perturbar a satisfação capitalista.

Vamos dar uns passos atrás a fim de dedicar uma carta de amor ainda mais admirável aos bárbaros. Trata-se do nascimento do grande Estado alemão dos Francos, do império de Carlos Magno, a partir das ruínas do Império Romano:

O Estado romano se transformara em um mecanismo gigantesco e complexo, cujo objetivo exclusivo era espoliar seus súditos. Impostos, serviços obrigatórios ao Estado e todo tipo de fornecimento de produtos afundavam cada vez mais a massa da população na pobreza; a extorsão praticada por procuradores, cobradores de impostos e soldados aumentou a pressão até que esta se tornou insuportável. A esse ponto chegou o Estado romano com seu império mundial: ele fundou seu direito de existência na manutenção da ordem interna e na defesa externa contra os bárbaros. Porém, sua ordem era pior do que a mais grave desordem, e os bárbaros, contra os quais ele dizia proteger os cidadãos, eram ansiados por estes como salvadores. (Engels, 2019, capítulo VIII)

Com as vitoriosas invasões bárbaras, parecia que a história, e, assim, a civilização e a cultura, haviam sido paradas por quatro séculos (nos quais a Europa, arrancada de Roma, foi redesenhada na constituição gentílica germânica). Mas esse não foi o caso. O jovem sangue bárbaro assimilou tudo que era vital e estava vivo na tradição clássica. Como sempre, tudo o que os derrotados haviam elaborado de técnica, conhecimento e de progresso efetivo não pereceu, mas, na verdade, conquistou o vitorioso. Citamos muitas vezes o exemplo das invasões bárbaras vitoriosas, bem como o das coalizões vitoriosas antijacobinas e antinapoleônicas contra a deformação da defesa. Aqui está a passagem qui nous faut [que é necessária]:

As classes sociais do século IX não se formaram no terreno pantanoso de uma civilização em declínio, mas nas dores de parto de uma nova civilização. A nova linhagem, tanto de senhores quanto de servos, era uma linhagem de homens, se comparada com seus predecessores romanos. A relação entre poderosos proprietários de terra e camponeses servis, que para estes fora a forma inescapável do ocaso do mundo antigo, era para aqueles o ponto de partida para um novo desenvolvimento. […] Mas qual foi a misteriosa poção mágica pela qual os germanos injetaram nova vitalidade na Europa agonizante? Foi algum poder miraculoso, inato à tribo germânica, como querem fazer crer nossos historiadores chauvinistas? De modo algum. […] Mas o que rejuvenesceu a Europa não foram suas qualidades nacionais específicas, senão simplesmente sua barbárie, sua constituição gentílica. […] Tudo o que os germanos implantaram de vital e revitalizador no mundo romano foi próprio da barbárie. De fato, só bárbaros são capazes de rejuvenescer um mundo que padece de uma civilização moribunda. (Engels, 2019, capítulo VIII)

É um erro, um erro vulgar e indigno de ser chamado de marxismo, tentar explicar a estagnação do antagonismo de classes e da revolução anticapitalista por fatores voluntaristas e malévolos de grupinhos policiais.

É um erro colocar uma nova e inesperada divisão de classes na civilização após o estágio da civilização capitalista, que nós proclamamos como a última e a pior da civilização. Não faz sentido procurar uma terceira classe, a fim de estabelecer que o Estado é o Estado desta classe dominante, distinta da burguesia, em que essa classe em si não seria nada mais do que os funcionários do Estado, funcionários que não são novos… personagens que nós sempre enxergamos e analisamos em todos os duelos de classe e em todas as subsequentes formas do Estado.

É um erro estabelecer a continuação histórica como: capitalismo privado, capitalismo de Estado, socialismo. Se se permitisse que este trio dominasse o palco, como na pochade ou no vaudeville, não haveria como fugir da conclusão do boletim da esquerda francesa: não ostracismo e escândalo, mas aliança e apoio, a esta personagem de número 2, e ao capitalismo de Estado, seja o seu ministro Hitler ou Stalin, para que logo estivesse sozinho diante de nós.

Desde o período imediato do pós-guerra, e de fato desde a primeira aparição do fascismo na Itália em 1919, nós desvendamos o grande problema histórico-estratégico: nenhum bloco democrático-liberal contra o fascismo — mas também nenhum bloco com o fascismo contra a burguesia liberal. Nós dissemos na hora: porque elas não são duas sociedades de classe diferentes: elas são uma só.

O fato de ter vivenciado e testemunhado a estratégia de blocos, e mesmo em ambos os sentidos, basta para explicar o recuo de nossa revolução.

A construção mais vazia é aquela que quer colocar perante o mundo infame da civilização capitalista (e também diante da maioria dos proletários que estão agora ligados a ela, em virtude dos grandes erros históricos) uma alternativa contida no fantasma da barbárie. Você não vai ter a revolução criadora de um novo mundo, talvez você consiga sufocá-lo, mas você ainda vai ter a crise de desintegração da sociedade atual: se não conseguir passar para o socialismo, cairá de volta na barbárie? A ameaça, que serve apenas como um exercício intelectual, não assustará nenhum burguês e não incitará nenhum proletário à luta. Nenhuma sociedade decai devido a suas leis internas, a suas necessidades internas, se essas leis e necessidades não levarem ao levante de uma profusão de homens, organizados com armas nas mãos — e isso nós sabemos e esperamos. Não há morte sem trauma para nenhuma “civilização de classes”, independentemente de quão corrupta ou repugnante ela possa ser.

Quanto à barbárie, que supostamente sucederia a tal morte do capitalismo por meio da dissolução espontânea, se seu desaparecimento fosse considerado por nós uma premissa necessária do desenvolvimento ulterior, que inevitavelmente teria que passar pelos erros das civilizações subsequentes, suas características como forma humana de convivência não têm nada que nos faça temer seu impensável retorno.

Assim como Roma necessitava de hordas selvagens para que tantas e tão úteis contribuições à organização das pessoas e das coisas não se perdessem, hordas selvagens que eram portadoras inconscientes de uma grande e distante revolução, assim, gostaríamos que uma poderosa onda bárbara derrubasse os portões deste mundo burguês de aproveitadores e de opressores exterminadores.

Porém, nela, mesmo que haja fronteiras, muros e cortinas, todas, todas as forças, mesmo que se contorçam e lutem uma com a outra, elas permanecem sob a tradição da mesma civilização.

Assim que o movimento revolucionário da classe operária conseguir recuperar sua força, organização e armas, e quando puderem surgir formações que não aderem à civilização de um Acheson ou Malik[4], então elas serão forças bárbaras que não desdenharão do fruto maduro do poder industrial moderno, mas que o arrancarão das mandíbulas dos exploradores, quebrando seus ferozes dentes que ainda mordem.

Então, que o socialismo dê boas-vindas a uma barbárie nova e frutífera, tal como aquela que desceu dos Alpes e renovou a Europa, e não destruiu, mas sim exaltou os séculos de sabedoria e arte aprisionados no calabouço dos formidáveis impérios.

Referências

ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado [tradução de Nélio Schneider]. São Paulo, Boitempo, 2019 [livro digital].

VOLTAIRE. Cândido, ou o Otimismo [tradução de Mário Laranjeira]. São Paulo, Penguin/Companhia das Letras, 2012 [livro digital].

Notas

[1] Artigo publicado originalmente em Battaglia Comunista, nº 22, 1951. A tradução foi realizada a partir da tradução para o inglês da Libri Incogniti e a revisão foi feita a partir da versão no original italiano disponível online na n + 1. Os colchetes com traduções de expressões em latim e francês são nossos; incluímos algumas notas da tradução para o inglês, indicadas como [N. T. I.] e notas feitas por nós aparecem como [N. T.]; as citações de Engels foram retiradas diretamente da tradução para o português, como indicado nas referências. [N. T.]

[2] Andrey Vyshinsky (1883–1954) e Dean Acheson (1893–1971) eram os ministros do exterior da URSS e dos EUA, respectivamente, entre 1949 e 1953. [N. T.]

[3] Pietro Nenni, amostra exemplar de um oportunista: em 1914, membro do Partido Republicano, defensor da guerra, então com os fascistas. Em 1921, membro do PSI [Partido Socialista Italiano]. Depós da 2ª Guerra, ele conduz o PSI a uma aliança com o PCI (“companheiro” de Togliatti), partido que ele dissolve novamente em 1956/57 para preparar a entrada do PSI no governo de centro esquerda. [N. T. I.]

[4] Yakov Malik (1906–1980), diplomata e político russo. [N. T.]

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